8 Maio 2014      01:00

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Dinheiro: a historieta de Um, Outro e Mais-Alguém

Parece ser o sangue da economia, na medida em que leva energia a todas as células da sociedade. É, até, estudado como se tal efetivamente fosse (transportador de energia), através do uso de funções termodinâmicas – é a econofísica. Mas, o que é o dinheiro, à luz da opinião de um comum mortal? Papel, metal, impulsos elétricos, mera linguagem de significados prometidos? Segue uma dessas opiniões…

Vejamos: evidentemente terá havido um tempo em que não se usou dinheiro em parte alguma. A troca de coisas, de serviços, foi anterior à existência de dinheiro. É aceitável e, consta, historicamente provado. Mas, efetivamente, houve um dia em que alguém “inventou” aquilo que hoje costumamos designar de algo que “funciona como dinheiro”.

Imagine-se, então, a seguinte historieta exemplificativa: Um homem tem porcos e Outro homem galinhas tem. Convivem e entendem-se porque, imagine-se, aceitam que quando Um precisa de galinhas e Outro de porcos, Outro dá cinco galinhas a Um e Um dá um porco a Outro. Tudo corre muito bem neste simplicíssimo sistema de trocas. Um dia, para quebrar a regra e obrigar Um e Outro ao exercício da inteligência, dá-se o imprevisto.

Por qualquer motivo, certo dia, Um não tem porcos (não ponderemos o porquê: se não tem ou apenas diz não ter é outro assunto, muito mais avançado…). Certo é que ambos aceitam como verdade que Um não tem porcos. Outro acredita. Dá crédito, portanto, à informação de Um. E Um, inteligentemente, propõe a Outro que, mesmo assim, dê cinco galinhas a Um. Um quer galinhas e, não tendo porcos para dar a Outro, pede galinhas a Outro. Outro, que confia em Um, e não tem falta de galinhas, nem precisa de um porco já, simpaticamente aceita. Mas Um, inteligentemente, mostra a Outro que não quer esquecer-se, de maneira nenhuma, de que levou cinco galinhas sem dar um porco e diz a Outro que, para evitar o esquecimento, dará a Outro um papel que diz: “Vale um porco.”. Assim, quando Um tiver porcos, e Outro quiser um porco, apresentará o papel dizendo “Vale um porco.” a Um e Um, recebendo o papel, dará um porco a Outro. Ficará, nesse momento, o negócio feito. Outro aceita e agradece a Um.

Assim sim - pensa ele - guardará o papel e tudo se resolverá, logo que possível e necessário. É bom negociar assim! (Juntaram-se espermatozoide e óvulo donde nascerá o dinheiro, após adequada gestação).

Passa-se o tempo e, por acaso, Outro não quer porcos… Um não se interessa pelo tempo passado… pois, quando Outro quiser porcos, só terá que apresentar o papel a Um… Outro não se interessa por porcos por mais algum tempo mas, a certo momento, decide querer ovelhas. Sabendo que Um não tem ovelhas, nem com ele fala do assunto… Em vez disso dirige-se a Mais-Alguém que, é sabido, tem ovelhas. Junto de Mais-Alguém procura negociar: Outro pretende uma ovelha. Mais-Alguém não parece, à primeira vista, muito interessado em dar ovelhas (pudera!). Outro explica que, durante muito tempo, trocou galinhas por porcos com Um. Dava-lhe cinco galinhas e recebia um porco. Mas, agora, não quer porcos, quer ovelhas, e, por isso, decidiu propor o mesmo a Mais-Alguém. Mais-Alguém, definitivamente, não quer galinhas. E a conversa sobre porcos fá-lo recordar-se de um desejo antigo… “Mais-Alguém quer é porcos!”

Segundo surto de humana inteligência invade o espírito comum deste sistema de trocas. Outro, desejando uma ovelha, logo entende que, não tendo porcos para dar a Mais-Alguém, facilmente poderá tê-los. Bastará ir levar o papel, onde diz “Vale um porco.”, e cobrar a sua dívida junto de Um. Assim trará um porco que poderá trocar por uma ovelha. Mais-Alguém fica radiante! Isso é a solução! E logo diz que aceita. Um porco por uma ovelha parece-lhe uma troca perfeita! Simples seria…

Mas, Outro pensa melhor e conclui que talvez Mais-Alguém pudesse levar o papel a Um… Mais-Alguém, que até tinha que fazer para aqueles lados, não prevê dificuldades e aceita. Dá uma ovelha e fica com… um papel… Nasceu o dinheiro, gestação terminada! O triângulo económico deu à luz! 
Com dinheiro na mão Mais-Alguém está feliz. É excelente! Basta pensar: não tem cinco galinhas para dar a Um (que pesam e, bem vistas as coisas, parecem-lhe antipáticas) tem, apenas, um papel. Grande mais- valia esta! Somos inteligentes!

Quando entende por bem, Mais-Alguém, vértice deste geométrico triângulo de trocas, dirige-se a Um e propõe-lhe comprar-lhe um porco. Um estranha. Comprar! Que coisa é essa? Mais-Alguém explica a história e Um compreende bem. Mais-Alguém quer dar-lhe o papel que diz “Vale um porco.” e levar um porco. Um pensa… É que, na verdade, Um fez o que fez com Outro, com quem tinha estabelecido uma relação de grande confiança, não o fez com Mais-Alguém. Realmente Um nem o faria com Mais-Alguém. É que Um não gosta de ovelhas, gosta de galinhas… Mais-Alguém, por seu turno, não gosta de galinhas, mas sim de ovelhas… e de porcos… Aquilo não parece bem a Um. Um não quer o papel de Mais-Alguém.

Um não se sente endividado perante Mais-Alguém e arranja-se um problema. Mais-Alguém não gosta de ser incapaz de levar a bom porto a sua pretensão. Eis que Mais-Alguém regressa, triste, para casa. Então o que aconteceu? – pensa Mais-Alguém. No fim das contas, Mais-Alguém decide ir falar com Outro. Diz-lhe que o dinheiro nada vale, porque Um não o aceita, e quer de volta a ovelha.

Isto atrapalha Outro. Da discussão nasce a razão e, Outro, muito mais atrapalhado ainda, e cheio de galinhas, diz a Mais-Alguém que não pode dar-lhe a ovelha. Já a comeu. Mas, para recompensá-lo pelo tempo perdido, e pelas arrelias, ele aceita o papel de volta e dará a Mais-Alguém dez galinhas. Mais- Alguém não gosta de galinhas mas, de repente, entende que o papel ganhou valor: agora poderá trocar dez galinhas por dois porcos, se Um lhe fizer o mesmo preço que fazia a Outro. Como será? Estas incertezas são estimulantes! – pensa Mais-Alguém. Mais-Alguém começa a gostar, ainda mais, de dinheiro… pode fazer com ele o que nunca fez com animais. O dinheiro é levezinho!

Portanto, querendo porcos, Mais-Alguém arrisca. Pede a Outro que escreva num papel “Vale dez galinhas!”. Mais-Alguém aceita que, assim, será tudo muito mais fácil. Não terá que carregar as antipáticas galinhas e, Um, certamente lhe dará dois porcos porque, com o papel, Um ganha o direito de trazer dez galinhas do Outro. E assim foi, Um aceitou, deu um porco a Mais-Alguém, pôde cobrar dez galinhas a Outro, e viveram felizes para sempre… Calma, calma, atenção por favor! Um deu um porco? Mas não eram dois? Podiam ser mas, infelizmente para Mais-Alguém, o preço mudou. É esperto o Um? Parece que sim. Usou a verdade comercial… estranho conceito… criou os gâmetas do dinheiro e de um porco fez dez galinhas, em vez de cinco! Tudo previu… ou teve sorte? Coisas misteriosas! Alto ainda… caso Outro não tenha destruído o papel (algo probabilíssimo), poderá pedir um porco a Um… a coisa equilibra-se… fá-lo-á, ou não terá esperteza para tal? Mas, e se entretanto passar tempo… é que, tempo é dinheiro!

Esta historieta, talvez infantil, pretende demonstrar como a necessidade de trocar, a confiança, a expectativa, e o excesso, são algumas das variáveis indispensáveis a “fazer dinheiro”, algo tão perigoso e tão inevitável. Criada a rede de trocas tudo se estabelece fluentemente, mas, quebrada essa rede… a verdade, na sua pureza de aparência mais pura, é que ninguém come, no sentido gastronómico do termo, dinheiro. Dinheiro este que se constitui como algo que, como tanto do tudo que existe, pode não ser mais que uma pura ilusão.

Daqui até ao capital fictício, que governa o Mundo, até às bolhas disto e daquilo, e até à ditadura dos mercados, aparentemente aceitáveis em função do direito a termos uma economia democrática (que direito democrático já se viu o que é, com o direito subordinadíssimo à economia) vão uns passinhos conceptuais, é certo… Mas, também aparentemente, tudo indica que, tudo, o que à economia com moeda diz respeito, parece ter começado em algo semelhante a esta historieta… na opinião deste autor…!