21 Janeiro 2021      11:19

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Trump. O vírus que veio para fortalecer o sistema imunitário democrático

Foi na manhã do dia 9 de novembro de 2016 que acordei com a notícia de que Donald Trump havia sido eleito presidente dos EUA, de longe a prenda de aniversário mais inusitada que alguma vez recebi, devo dizer.

À data recordo-me de ter recebido a notícia com choque, porque embora a probabilidade de Trump vencer fosse muito equivalente à de Hillary, o meu eu racional mais sensato sempre acreditou que à boca das urnas o povo americano decidisse eleger alguém mais previsível no seu comportamento e mais apto para o cargo.

Contudo, em Novembro de 2016, confesso que sentia uma leve vontade de ver como se comportaria um lunático daquela ordem caso se tornasse presidente de um país tão poderoso, embora os livros de história relatem que normalmente a mistura não corre da melhor forma, mas tinha em mim aquela curiosidade incurável de cientista social que era, à data. Não por concordar com as ideias ou com a retórica, porque não concordava, é um modo de estar na política que termina comummente em violência e entrincheiramento, mas sim porque queria testemunhar em vida essa mistura entre homem e cargo tão desaconselhável. Iria Trump ajustar-se ao cargo e sentir o peso do mesmo, que o obrigaria a mudar para uma postura mais institucional e unificadora? Que não se verificou. Ou iria Trump continuar a ser o mesmo e a governar como se apenas existisse o seu eleitorado? Que foi precisamente o que aconteceu.

Em Novembro de 2016 estava eu a iniciar a escrita da minha tese de mestrado, e recordo-me de, numa das reuniões com o meu orientador – como duas pessoas das Relações Internacionais que eramos – conversarmos acerca do tema. O professor mostrava-se preocupado com o acontecimento, com razão, pois tinha sido dado o cargo mais poderoso do mundo a um homem inapto e lunático, todavia, recordo-me de o interromper e dizer: “Sabe, eu tenho em querer que isto pode ser o melhor que aconteceu às democracias ocidentais nas últimas décadas. Ver chegar ao poder um homem que transporta a bandeira da extrema direita mundial neste momento, que é ao mesmo tempo um homem completamente inapto, pode vir a ser a maior vacina contra a extrema direita no futuro próximo, e a melhor forma de poder travar os movimentos semelhantes que se vão disseminando também aqui na Europa. Quem melhor para derrubar um sistema indesejado que um líder incompetente, infantil, imprevisível e palerma aos comandos do mesmo?”.

É óbvio que, na altura, tudo isto eram suposições e meras hipóteses científicas, nenhum de nós sabia o que iria acontecer, mas considerávamos que podia acontecer o melhor dos cenários assim como o pior dos cenários.

O pior dos cenários seria certamente ver acontecer um efeito spill over que alastrasse à Europa e viesse servir de combustível para um dominó de florescimento e crescimento dos movimentos de extrema direita e legitimação de regimes protofascistas como os da Polónia e da Hungria, que de certa forma existiu e ajudou a desenvolver movimentos como o Vox ou o Chega na península ibérica, território onde estes movimentos não tinham ainda práticamente expressão. No entanto, esse efeito spill over não se revelou catastrófico nestes últimos quatro anos.

Isto porque o melhor dos cenários intercedeu com maior vigor, sendo esse cenário a constante descredibilização da figura de Trump por via de todas as trapalhadas, gafes e inconsistências de discurso e de medidas, assim como o não cumprimento de grande parte das promessas mais vocalizadas durante a campanha eleitoral, não houve praticamente muralha construída, o México não pagou coisa nenhuma, as fábricas e os empregos não regressaram à américa rural, o Obamacare não foi extinto nem substituído, o investimento em infraestrutura foi inexistente, não jogou menos horas de golf que Obama, enfim. Entre outras questões não implícitas na campanha, a gestão da pandemia foi um desastre, a gestão do conflito entre as coreias foi um mero circo mediático, a gestão das relações com os aliados causou afastamento dos mesmos na cena internacional, Rússia e China fazem troça da imagem dos EUA, a saída do acordo de Paris também foi contraproducente na reputação do país, assim como o rasgar do acordo nuclear do Irão. Todas estas circunstâncias e muitas outras foram determinantes para se confirmar que Trump não era apenas inapto para as funções, mas também, um líder instável que não transmitia sentimento de segurança ao mundo, ou aos próprios americanos.

Neste sentido, e depois de ver Trump cair com estrondo, sem glória nem história, com uma postura miserável face às eleições e como incitador de uma tentativa de revolução completamente idiota e de contornos trágico-cómicos perpetuada por um exército de zombies tontos, a bandeira da extrema direita perdeu esta semana a sua abelha rainha, o seu líder natural.

Não podemos senão especular acerca do que poderá resultar desta situação de orfandade, é possível que os movimentos de extrema direita se virem para a imagem de Putin, o que não lhes é propriamente favorável visto que a Rússia, embora seja um país poderoso é um país para onde os ocidentais olham de soslaio, não só por culpa da herança soviética mas também por ser manifestamente sabido que a Rússia é tudo menos uma sociedade livre e tolerante como as nossas, onde há perseguição política de opositores, envenenamentos, desaparecimentos misteriosos de jornalistas entre outras situações suspeitas.

Mas é também possível que estes mesmos movimentos possam estagnar em determinados países e perderem mediatismo, embora alguns deles possam conseguir estabelecer-se politicamente em alguns parlamentos e assumir outra retórica e outro eleitorado, visto que são movimentos com alguma plasticidade por via de serem desprovidos de espinha dorsal ideológica.

Em suma, creio que Trump acabe por servir como que um vírus maligno ao qual a sociedade americana sobreviveu meritoriamente e lhes veio fortalecer o sistema imunitário democrático, como previu em 2016 o filósofo esloveno Slavoj Zizek que afirmava que o sistema democrático ocidental necessitava de um abanão que o obrigasse a regenerar e a regenerar a crença dos eleitorados nas instituições democráticas. Após sobreviver a este vírus espera-se que após algum contágio à Europa, esta receba também os esperados anticorpos gerados do outro lado do Atlântico e que dentro de alguns anos possamos usufruir de uma sólida imunidade de grupo que nos permita fazer mirrar estes movimentos de volta para o buraco de onde nunca deveriam ter saído.

 

Imagem de capa de Brendan Smialowski / AFP