6 Março 2016      13:47

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QUEM NÓS SOMOS (UMA NOTA DESPUDORADA DE VERDADE)

"INCONSTÂNCIAS"

Existem pessoas que nunca se questionam acerca de sentidos e direções. Andam como que na certeza de que os seus pés, metaforicamente falando, funcionam em piloto automático. Andam como que na certeza de que existirá sempre um lugar onde os seus pés poderão descansar e mesmo que esse lugar não seja, numa primeira instância, o seu favorito acabarão por ser habituar.

Existem as outras pessoas. As pessoas como eu que se assemelham muito mais aos chamados “bichos-do-mato”, que se arreliam porque querem saber para onde caminhar antes ainda de se fazerem ao caminho, que se aborrecem porque passam horas debruçados sobre mapas mentais e realizações futuras que demandam músculos flexíveis e uma coragem implacável. É o preço de nos questionarmos acerca dos sentidos e das direções: acabamos por temê-las porque o são e porque podem nunca o ser. – Existem as outras pessoas, as pessoas como eu que quase parecem idiotas no seu nervoso miudinho e na sua cólera organizada.

É o preço de se pensar: sentir uma cólera organizada por tudo aquilo que se encontra desorganizado. – Uma sociedade inteira desorganizada, um grupo de pessoas inteiramente desorganizado, uma pessoa com a vida inteiramente desorganizada pensa muito e pensa sempre com essa cólera organizada que não causa dano mas que faz comichão. Não são vítimas porque aprenderam a crescer desse lugar mas também não são agressores: são falantes. Levantadores de punhos muito mais do que de vozes. Mas falam com vozes seguras e hirtas, ao falar. Quando falam.

Sei demasiado bem de que são construídas essas outras pessoas; os arreliados, os aborrecidos e aborrecedores, os revoltados. Sim, vamos chamá-los pelos nomes: os revoltados. Vamos chamá-los pelos nomes que hoje vêm conotados da maledicência e do preconceito gratuito. Da ideia que nos impuseram de que temos que estar todos felizes e cómodos na vida e no mundo. De que não temos o direito de nos indignar, de armar um escândalo, de nos irritar, de dizer aquilo que nos fere e nos rouba a dignidade enquanto pessoas, de dizer a verdade. Alguém, neste caminho longo que a humanidade tem feito (e ainda assim não longo o suficiente para que dele recordemos as mazelas), achou que a verdade não devia ser dita e resolveu utilizar a palavra “revolta” como álibi nesta decisão que não lhe cabia e não cabe, hoje, a ninguém.

Existem aquelas pessoas que vivem acomodadas e cómodas no luxo da sua vida da alta classe que, embora tenha perdido o cunho não perdeu, com toda a certeza, a realidade da sua posição. Estas pessoas gostam de considerar as vozes baixas e o apaziguar das emoções. Não se engane, caro leitor, não são frias: são apenas o vislumbre ilusório de uma vida. A fachada da sua própria vida. Regozijam-se nas demonstrações complacentes e nas atitudes condescendentes, na criação de uma verdade que podemos adivinhar falsa ao observar do exterior mas a qual temos que corroborar enquanto realidade suma das realidades porque numa vida plena de felicidade o verniz não pode estalar. E se o verniz estalar, alto lá, ele estala sempre com palmadinhas nas costas, queixumes pardacentos e delicadas palavras açambarcadas por uma emoção enjoativa de tão forçada e, ainda assim, desprovida de experiência.

Cá em baixo, no lugar dos pobres, a história é totalmente diferente. Nós, os pobres, sabemos que a história é diferente. Não tem palavrinhas bonitas e aconchegos suaves. Não tem a hipocrisia deslavada de quem tem o poder e a paciência para dessa hipocrisia se poder usar sem passar por hipócrita. Nós, os pobres, passamos antes por revoltados.

Riem-se na nossa cara e não imaginam o que esse riso significa. Advogam o direito de lançar uns quantos ditos ao ar, dizendo-se como tendo pouco e sendo felizes quando o pouco que conhecem é dia sim, dia não chegarem a casa com as mãos cheias das últimas tendências em vestuário, maquilhagem, outras coisas que tais. Dizem-se tendo pouco e sendo felizes quando nunca lhes faltou alimento na mesa e capacidade para parecerem o bem que precisam de parecer. Riem-se na nossa cara e acham que nós não sabemos que esses ditos são só ditos e que não sabemos o que é, realmente, pouco.

Nós, os pobres, sabemos o quanto o pouco pesa nas costas e no peito. Quanto o pouco custa na garganta e na vida. – Perdi conta às vezes que encontrei a minha mãe a chorar de desespero ou a face fechada do meu pai com um medo que não nos queria dizer ser medo. Hoje perco a conta às vezes que choro por não os ter podido poupar ao sofrimento que era sofrer sem quererem mostrar-me que sofriam.

Sim, caro leitor. Aqui me encontra novamente desprovida de apetrechos, de manias, de armaduras que uso como coragem e não e somente como revolta, como eles querem que seja. Aqui me encontra frágil e desnuda contando-lhe de lágrimas de raiva muito mais que de tristeza: essa raiva organizada que é querer dizer ao mundo que não sou obrigada a agir como boneca de porcelana quando me sinto muito mais feita de ferro.

A raiva organizada que é querer gritar ao mundo que já vi os meus pais chorarem de desespero e nunca disse que vi os meus pais chorarem de desespero como que procurando abrigo. Não, caro leitor. Não procuro a sua pena, procuro a sua compreensão. A compreensão que, bem administrada, o vai levar a perceber que a palavra “revolta” não é para mim apenas uma questão pessoal. E acredite, tenho-me cruzado com tantos indivíduos que tentam fazer desta palavra um defeito pessoal que acham que carrego com a ignorância de uma criança mimada de poucos anos. Penso até, por vezes, na sua expressão ao dizê-lo e tenho quase a certeza que pensam que eu use a revolta como que sendo um privilégio.

Caro leitor, eu sou dessas pessoas arreliadas que não têm medo da forma como encaram a minha revolta e têm ainda menos medo de demonstrarem essa revolta. De deixarem o verniz estalar. Sou dessas pessoas preocupadas que sabe que de pouco servem palavras bonitas quando se trata de uma luta pela dignidade não minha, mas de muitos como eu que vi os meus pais chorarem e hoje choro por eles e com eles e de muitos pais que choraram e engoliram o medo claro das suas faces para que os seus filhos não vissem esse medo.

Estou cansada de ídolos plastificados de palavras vãs, sorrisos bonitos e testemunhos ocos e patéticos. Estou exausta da bajulação do saber estar, do saber dizer, do mostrar-se feliz e contente quando ao nosso redor somos apenas pessoas a lutarem insistentemente para provar que somos isso mesmo: pessoas. Pessoas que choram, que gritam, que desesperam e passam muito tempo desesperadas. Pessoas que se revoltam não porque são pobres mas porque ninguém respeita a condição da pobreza. – Como sempre preferimos o artificial, essa tal pobreza formada para estatuto e humildade falsa.

Eu sou uma pessoa revoltada. Escrevo inúmeras linhas contra as injustiças e as imagéticas sociais desta sociedade. Teço comentários de peito cheio e face ruborizada. Levanto o punho para dizer: já chega! Quando acho que tenho que dizer que já chega. Bato o pé e recuso-me a ser mais uma figura enganadora neste concurso que parece medir qual o que consegue sofrer mais em silêncio. Acima de tudo gosto da verdade. Digo a verdade. Digo a verdade até sobre mim, quando me querem apontar o dedo e eu o aponto a mim mesma e antes deles já estou a dizer sem o medo do preconceito: eu sou pobre, fui pobre, usei roupa dada, os meus pais precisaram de ajuda. Hoje ainda sou pobre mas aprendi que existe uma coisa que um pobre deixa de temer quando se assume enquanto isso: o preconceito dos ricos. A não aceitação desses que pensam saber o que é pouco e o que é sofrer para manter uma família.

Existem pessoas que se importam com a sua posição social e por isso inventam-se e reinventam-se. Formam-se aquilo que não são e que nunca serão e escondem-se na solidão da noite onde tiram as máscaras e o peso que estas transportam. E existem pessoas como eu: pessoas que não se importam de ser chamadas de revoltadas e se assumirem como tal. Pessoas que não têm vergonha de trazer em mãos a sua pobreza e na pele a mais clara humildade e o festival que é ser-se pessoa e ser-se irritado, sofredor, inesperado. Revoltado.

Existem pessoas que ainda não compreenderam que se não estão revoltadas é porque não estão a tomar a devida atenção. E existem as outras pessoas: as que sabem já que a revolta é a única forma de se fazerem ouvir.

 

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