28 Fevereiro 2016      16:38

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POLÉMICAS DE GALINHEIRO

"INCONSTÂNCIAS"

Ainda hoje me consigo lembrar da minha primeira experiência com galinhas e galinheiros. Devia ter uns dez anos - a minha memória, carcomida pelas traças de uma preocupação e ansiedade mundanas, já não é a mesma - e uma adoração pelos animais maior que a que exibo hoje. Mas eu não estava preparada para aquilo, para aquele encontro repentino com a desordem e a histeria. Sim, eu prezava o sossego das minhas brincadeiras de menina e não estava acostumada com as grandes exaltações parafernáticas com que, naquele dia em que decidi alimentar as galinhas com o meu bisavô, as bichinhas me presenteram.

No momento certeiro em que pus um pé para lá das portas dos seus espaços pessoais cómodos e habituais só poderei relatar tentativas de vôo patéticas acompanhadas por penas que dançavam aceleradas pelo ar e a voz alarmada do meu bisavô: "Elas não te conhecem, não podes entrar assim com tanto à vontade, tens que ter cuidado para não as assustar!" No momento, na minha inocência, confesso que o único cuidado que queria realmente ter era o de não ser bicada por aqueles seres mínimos, mas que tinham uma ferocidade grande e ainda assim ridícula de seres tão mínimos que eram. Só agora, passados doze anos, só agora, tendo uma capacidade de observação mais efectiva e de compreensão mais evoluída (digo compreensão; não aceitação. Preparo-lhe, portanto já o terreno para as palavras que se seguem) me apercebo de quão ridícula foi toda aquela situação e ainda mais: quão ridículo foi o meu medo e o medo das galinhas. Isto porque, querido leitor, sem falsas pretensas e por vezes também aí me incluindo, devo dizer que a nossa sociedade é o mais recente e último modelo de galinheiro formado por galinhas que nem por isso estão menos histéricas ou assustadas. Que nem por isso são, também, menos ridículas.

Sim, somos ridículos. Este país de marinheiros que abandonou a proa do barco para se agarrar cegamente a convicções e ao cómodo hábito de entrar em histeria assim que a primeira ideia diferente surge no seu radar de normalidade, quase autoritariamente estabelecido, alimenta-se de um movimento circundante e circular, uma programação quase vinculativa de acção-reacção para tudo aquilo que surge na sua sociedade de galinhas frustradas e frustrantes. Passámos de supostos guerreiros a criaturas mínimas que ainda não compreenderam a sua posição mínima e a ridicularização que nasce da não aceitação dessa pequenez. O perigo desta posição, porque ele existe, é quando desvirtuamos o nosso medo, mascarando-o com raiva e nutrindo-o com aquela palavra tão apreciada que é "respeito". Ao lado dessa e sem dela se poder dissociar aparece então a liberdade expressão, essa senhora que tão depressa é a nossa cúmplice no crime quanto o próprio crime que achamos descabido. - Lembro-me que as galinhas do meu avô também gostavam que eu as alimentasse de uma certa distância, da forma que preferiam, sem, de preferência, introduzir um pé dentro da sua zona de conforto. Essa que para elas era física mas que para nós, hoje, é espiritual, abstracta e portanto mais difícil de manter delimitada ainda que não se deva manter cerrada entre muros e abismos.

Mas hoje mantem-se. A nossa zona de conforto é hoje um muro de Berlim que não aceita a diferença e a divergência mas que mesmo assim pede um respeito soberbo. Penso que esta questão não é assim tão complicada quanto nos parece: passa por um erro de definição e compreensão dessa definição. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa o respeito não aparece em medida nenhuma como uma obrigação mas sim como "um sentimento que nos impede de dizer ou fazer coisas desagradáveis a alguém" e, mais curioso, aparece também como "obediência, submissão, medo do que os outros possam pensar de nós". Para mim, pessoalmente e sem querer ferir a sua suscetibilidade, prezado leitor, o respeito sempre foi uma admiração ou aprovação que se conquista e não que se recebe assim, gratuitamente.

Poderia, é certo, questionar-me: então você sai pela rua ofendendo o primeiro com o qual não concorda? Não, não é bem assim. Não é bem assim porque, e revisitamos novamente a necessidade de lucidez, as pessoas não se discutem. O que se discute são os ideais e sim (aí vem o grande monstro, a blasfémia, o "Ooohh"), as crenças. Perceba, eu não discuto o seu direito de ter a sua crença, eu discuto o que essa crença diz. Perceba, crença, espiritualidade, fé, religião e igreja são vocábulos que, embora ligados, significam coisas totalmente diferentes.

 Sim, caro leitor, cheguei ao ponto que queria chegar depois de o preparar para mais uma daquelas crónicas que tão bem conhece provenientes de mim: aquelas que fazem qualquer indivíduo com um muro de Berlim bem erguido e uma opinião demasiado diferente da minha bradar aos céus. - Opinião à qual tem todo o direito, mas que, muitas vezes, precisa de ser questionada e discutida e, mais uma vez, não me ressalvo desse grupo.

Gosto daqueles que me desafiam em termos de discussão saudável mas não consigo compreender a extrema necessidade de fazer um apogeu deliberado a tudo aquilo que ofende o nosso espaço pessoal. - um apogeu que se configura com essa ridícula raiva de querer provar a todos e, desconfio, a nós mesmos, que estamos certos do que estamos a dizer, a professar, a impôr aos outros. E sim, a liberdade de expressão passa por aí. Se há algo que me faz imensa comichão quando se discutem ideais é aquele argumento cliché que usamos como escudo para tudo (mesmo que não seja adequado): "A tua liberdade termina onde começa a do outro".              

É verdade? É, quando, de alguma forma estamos a proibir a pessoa de não fazer uso da sua liberdade ou de alguma forma a estamos, realmente, prejudicar. E, caro leitor, sublinhe o realmente porque aqui somos todos adultos e as palavras são meras e vãs numa troca de opiniões. Não sejamos falíveis connosco mesmos e consigamos ser seguros e tenhamos um pouco de humor. Nenhum de nós vai morrer porque o Bloco de Esquerda, num erro crasso e numa atitude muito mal julgada, utilizou uma imagem religiosa para aferir um argumento fraco. Não tomemos o lugar das famosas "virgens ofendidas" e chamemos o concílio dos deuses para castigar os infiéis. Não percamos o nosso tempo e a nossa segurança no que cremos ao criar petições on-line que muito mais se assemelham, em alguns casos, a uma forma de censura.

Quero dizer-lhe, caro leitor, que aprendi faz muito tempo que quando estamos certos e seguros de quem somos e daquilo que defendemos não nos ofendemos assim tão facilmente e não entramos tão gratuitamente nestas polémicas de galinheiro. Não atentamos, principalmente, contra a liberdade dos outros quando queremos defender a nossa própria liberdade. E não podemos, de forma nenhuma, impôr retidão e santidade quando nem nós mesmos seguimos isso á risca. - Sim porque, não querendo entrar em detalhes desnecessários, a igreja católica ofende-se pelo uso de uma imagem mas não recorda, por ventura, que algumas das suas leis são a misóginia (Eclesiástico 42,14.), a violência (o que terá sido o dilúvio se não um ato violento?), o sacrífico e a idolatria de um ser que diz declaradamente que só ele poderá ser adorado? - Onde está portanto a liberdade aí? Ou até onde está a liberdade das crianças inocentes que todos aos anos são violadas por pessoas ordenadas e assumidamente católicas? - Não confunda, caro leitor. Não estou a problematizar a religião católica porque apenas ela deve ser problematizada, mas porque ela se acometeu ao ridículo de se importar mais com um cartaz ridículo como ofensa a si mesma do que com as mortes, o sofrimento, os pecados que tem, mas que não admite ter. Sem querer falar da hipocrisia que é aceitar sem revolta a caricatura muçulmana pelo Charlie Hebdo, mas, mais uma vez entrar em cruzadas ilusórias quando a caricatura era mais fisicamente e imageticamente parecida á da figura católica. (Já algum de vós viu Deus? Conseguem dizer-me se aquela caricatura era fiel ao seu corpo físico que, segundo, nem sequer existe realmente?)

Seguimos assim a polémica do galinheiro em que nos importamos muito mais com situações quase humorísticas como se estas fossem sentença de morte do que com o que elas nos pretendem mostrar - são uma forma de despertar que deixa muitos ainda mais adormecidos para lá dos seus muros de Berlim.

No final do dia, depois de todos os gritos irados e esganiçados, de todas as sentenças e julgamentos negativos, depois de todas as ofensas chegamos a casa, ajoelhamos e pedimos a Deus que nos perdoe e nos proteja para que no dia seguinte consigamos fazer o mesmo. - Pouco me importa se isto o ofende. Não deveria pois, se crê na sua crença deve saber que Deus me irá castigar.

Não, caro leitor. Não ouse dizer-me que eu deveria informar-me sobre aquilo de que falo porque devo dizer-lhe que eu fui acólita, tive catequese, dei catequese, pertenci a um grupo de jovens, a um grupo de missionários e fiz convívio fraterno. Fui batizada porque quis, fiz comunhão porque quis. Porque acreditava que ali poderia ser melhor e fazer uso da minha liberdade sem mariquices e picuinhices. Até ao dia em que sofri aquilo a que hoje se chama o "slut shame" - pediram-me que não usasse calções (calções grossos, de Inverno) quando fosse à missa. Eu não estava, como hoje compreende, disposta a abdicar da minha liberdade e da minha consciência limpa e muito menos do meu direito de não me sentir culpada porque usava aquilo com que melhor me sentia. Tal como as galinhas do meu bisavô, procuravam a comida, o seu bem-estar, mas não queriam aceitar-me ali, na extensão do meu bem-estar.

Estou cansada, devo confessar-lhe, destas ondas de ignorância que se transformam em ondas de ódio quando na verdade era muito mais simples se não as elevássemos a crime cometido contra toda e qualquer integridade. Estou cansada de ver palavras como respeito, liberdade de expressão, crenças, fé, serem tratadas como aquilo que não são - seja para o bem ou mal.

Estou infimamente cansada destas polémicas de galinheiro que de pouco adiantam á nossa sociedade senão a certeza de quão pequena e triste ela é: no meio das bicadas, dos córócós esganiçados, das penas a voar pelo ar e da não aceitação do direito de ser divergente perdemos os problemas reais que precisam de ser colmatados. Perdemos a humanidade e a humildade e ganhamos desígnios divinos para encher esperanças, bolsos e egos. Não ganhámos nunca é a posição de pequenez perante nós mesmos. - Somos ridículos. (sim, eu incluída.)

 

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