14 Maio 2018      17:38

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Évora assinala 50 anos do maio de 68. Entrevista a Paulo Guimarães

Uma das efemérides que assinalamos politicamente como umas das mais importantes de 2018 serão o 50 anos do maio de 68. São inúmeras as atividades por esse mundo fora que visam assinalar a data. A Universidade de Évora não é excepção e apresenta propostas a que não ficámos indiferentes. Fomos falar com Paulo Guimarães, membro da organização, que é Doutor em História Contemporânea e professor da Universidade de Évora.

Tribuna Alentejo: Porquê comemorar o Maio de 68? 

Paulo Guimarães: Creio que nesta altura faz todo o sentido refletir sobre o Maio de 68. Importa desde logo esclarecer que estamos a falar de acontecimentos que não ocorreram só no mês de maio de 1968 (visto que podemos situar a sua génese cerca de dois anos antes e visto que se desenvolveram a partir de abril e prolongaram-se até junho). Designaram-se, contudo, por maio de 68 e foram marcantes na história da Europa depois da II Guerra Mundial. Foi um movimento desencadeado por estudantes que lutavam na época contra o imperialismo e os valores culturais e políticos dominantes, que  não se circunscreveu à França, pois envolveu a Alemanha e teve influência na Itália e Reino Unido num período que ficou marcado pela "agitação estudantil" (como designava a nossa imprensa) também nas duas Américas. Foi um movimento de tipo novo porque envolveu diretamente os estudantes como agentes de mudança social, de tipo novo no seu repertório, e também de tipo novo pela natureza das reivindicações que colocaram e que abalaram os fundamentos daquilo a que podemos chamar de civilização burguesa. Reivindicações que iam desde as relações de género, às relações sociais e laborais, e à afirmação da  liberdade, desde logo a libertação sexual. Por outro lado, importa também assinalar a influência que maio de 68 teve em Portugal e que ocorreu de duas formas: pela difusão das suas ideias e pela participação ativa dos portugueses que se encontravam no estrangeiro. Falamos de estudantes e de operários que tiveram uma intervenção ativa não necessariamente só nesse período, ou que tiveram a sua formação política nesse contexto, e vieram para Portugal logo após 25 de abril, vindo a ter uma intervenção ativa já no novo caleidoscópio daquilo que eram as esquerdas em Portugal. Ou seja, falamos de um movimento heterogêneo que contribuiu para daquilo a diversificação e renovação das várias esquerdas europeias.

Paulo Guimarães, José Rodrigues dos Santos e José Vieira

Tribuna Alentejo: E como se vai celebrar?

Paulo Guimarães: Houve, do ponto de vista corporativo, vitórias importantes imediatas. O operariado francês aproveitou aquele contexto para obter ganhos substanciais, mas grande parte desses ganhos têm-se vindo a perder e a agravar com a doutrina da colaboração e da flexibilização que tem sido imposta através do paradigma da competitividade e produtividade que marcam nos meios de comunicação a teologia do mercado.

Não se trata, pois, de celebrar, mas de convidar à reflexão. E é uma reflexão que nos parece útil numa altura em que a Europa e o Mundo se defrontam com problemas graves e ameaças de diferente tipo. Do ponto de vista civilizacional vemos o que tem sido a evolução das relações laborais, as ameaças ao Estado Social e á dignidade do ser humano, enfim, o que tem sido o programa liberal e o seu ataque às propostas e às conquistas alcançadas naquele período em vários planos.

Tribuna Alentejo: De que forma maio de 68 continua a influenciar a vida de hoje?

Paulo Guimarães: Não penso que a questão se possa pôr de forma linear. O Maio de 68 foi um movimento que foi derrotado. Política e socialmente foi derrotado, mas todos são unânimes em dizer que algo muito relevante  ficou, apesar de tudo, nomeadamente o debate sobre as questões ecológicas que vieram para o primeiro plano do debate público e as questões de género. Falamos de questões ecológicas e não apenas os problemas ambientais concreto criado por esta ou por aquela fábrica, por este ou por aquele produto mas de modelo civilizacionais assentes no extrativismo donde resultam os problemas energéticos, as ameaças globais no plano da segurança ambiental, política e económica. Em suma, temos um novo tipo de preocupações e de agenda. E é muito mais por aí que nós vemos aquilo a que pudemos chamar essa herança que, afinal, traduzem tendências e fermentações que foram transversais às várias sociedades europeias e que participam em movimentos até transatlânticos que se mantiveram até aos dias de hoje. No entanto, não se pode dizer que essas propostas tenham sido em grande parte vitoriosas. Atentamos, por exemplo, ao caso dos Estados Unidos onde os acontecimentos de 68 estão marcados não apenas pela luta pelos direitos civis, contra o racismo  como também pela marcha dos pobres. E obviamente que nós não pudemos celebrar quando as desigualdades sociais são cada vez mais marcantes e torna-se evidente  a natureza oligárquica do poder. Aquilo que nós pudemos fazer é, afinal, fazer um balanço e reflexão sobre esse período e ver quais os caminhos para o futuro.

 

Tribuna Alentejo: E no caso concreto de Portugal quais as influências do maio de 68? Influenciou abril de 74?

Paulo Guimarães: Mais uma vez o percurso volta a não ser linear. Em 68 não aconteceu absolutamente nada em Portugal. A imprensa mostrou um país ordeiro com os seus estudantes a celebrarem, devoto expressivamente nas celebrações de Fátima que decorrem nesse mês, enfim, um Primeiro de Maio sem incidentes. Como é sabido, apenas no ano seguinte teremos  em Portugal um movimento estudantil importantíssimo que teve como pano de fundo a guerra colonial. Os americanos tinham a guerra do Vietname, os franceses tinham também essa luta anti-imperialista e Portugal, de facto, também incorporou essa rejeição do padrão imperialista que marcara a relação dos europeus com os outros povos. Por essa via, Portugal foi influenciado, até porque havia muita literatura clandestina a circular nos meios estudantis. Importa ainda recordar que houve também um caminho de uma certa esquerda para acções violentas, tal como aconteceu nalgumas outras esquerdas europeias. Mas mais importante do que estes diferentes percursos, nesta altura parece-me importante que após o 25 de abril, surgiu imediatamente como urgências a satisfazer, para além da descolonização, presente no programa do MFA, a questão do divórcio e o fim da Concordata, a preocupação pela assistência à criança, a preocupação pela melhoria da condição da mulher, por uma Universidade popular e por um ensino democrático nos métodos e no acesso. Se atentarmos naquilo que a imprensa portuguesa difundiu, logo após o 25 de abril, vemos, apesar das diferenças nos níveis de vida e da cultura da generalidade da população, algumas aspirações e marcas do Maio de 68 estiveram também presentes no 25 de abril. Para além da dinâmica interna da sociedade portuguesa, poderemos também encontrar pontos de contacto e algum contágio através da influência direta de pessoas que vieram após esse período para Portugal que não se enquadravam dentro da ortodoxia da oposição ao regime anterior.

 

Tribuna Alentejo: E pode adiantar-nos detalhes do programa?

Paulo Guimarães: Vamos ter três atividades. Um colóquio promovido pela Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, pelo programa doutoral em História Contemporânea e Mestrado em Estudos Históricos Europeus e Africanos que irá decorrer nos dias 17 e 18 de maio no Palácio do Vimioso e no Colégio do Espírito Santo. Temos também a decorrer um ciclo de cinema no Auditório Soror Mariana às 3as e 5as feiras com entrada gratuita, com cinema de autor ou de reflexão sobre aquela época. O ciclo não privilegia o acontecimento, a imagem do que se passou nas ruas de Paris ou que a narrativa histórica, mas trata de questões profundas como,  por exemplo, os jovens e a sexualidade, a democracia no trabalho, a crise ideológica. Este ciclo de cinema está a ser realizado em parceria com o Núcleo de Estudantes de História e Arqueologia da Universidade de Évora e procura assim cobrir os grandes temas daquele período convidando ao debate livre.

Está também a decorrer até dia 15 de junho no Palácio do Vimioso uma exposição que mostra como a imprensa portuguesa sob a ditadura retratou os acontecimentos naquele período. É também convite para revisitar aquela época.Nela mostramos também os temas emergentes na imprensa portuguesa nos meses após o 25 de abril onde podemos encontrar pontos de contacto com o maio de 68. Acompanha-a uma mostra de livros que marcaram intelectualmente aquele universo contestatário. Para tal tivemos o apoio da Biblioteca Publica, do Arquivo Distrital e de alguns particulares.

Tribuna Alentejo: Sabemos que o programa está recheado de figuras empolgantes. 

Paulo Guimarães: Alguns académicos portugueses que viveram este período em Paris na juventude disponibilizaram-se para nos dar o seu testemunho e reflexão. É o caso, por exemplo, de Manuel Villaverde Cabral que foi diretor do Instituto de Ciências Sociais e uma dos fundadores dos Cadernos de Circunstância, assim como José Rodrigues dos Santos. Do campo libertário teremos João Freire e José Maria Carvalho Ferreira, fundadores das revistas A Ideia e Utopia. Vamos ter também, pessoas de nacionalidade francesa como a Yann Moulier Boutang e brasileira, como Giuseppe Coco e um conjunto de contribuições de outros académicos portugueses e estrangeiros. Estão assim reunidas as condições para termos um bom colóquio em Évora não só pelo perfil dos participantes como também pelas propostas de comunicações que nos chegaram.

 

Tribuna Alentejo: Os Cadernos de Circunstâncias ligam-nos ao Maio de 68 de que forma?

Paulo Guimarães: Foram uma publicação periódica de finais dos anos 60 onde participaram intelectuais portugueses exilados em França e que reuniu um conjunto de textos e de estudos sobre a situação portuguesa. Entre eles contavam-se Alfredo Margarido, Fernando Medeiros, Manuel Villaverde Cabral, José Rodrigues dos Santos entre outros. Esta e outras publicações críticas  sobre a sociedade portuguesa tiveram alguma influência intelectual que se estendeu pela década seguinte. Recordo que, após o 25 de abril, os trabalhos de sociologia, quase todos muito marcados por leituras marxistas, que eram proibidos, passaram a ser especialmente apetecidos pelo público.