25 Agosto 2019      11:54

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Era Uma Vez… Em Hollywood

1969 (sonhado) pelos olhos adentro de 2019 (vivido)? Sim, como queiram,… mas também funciona permutando as correlações.

Tarantino, como todos os grandes, não pode deixar de fazer constantemente o mesmo filme. Nessa perspectiva, vive do amor pelo cinema (meio onde se construiu sem ajudas académicas – nunca estudou cinema, senão na sua sala-de-estar; pois em frente ao ecrã grande sonha-se, não se estuda) e expressa-se pela provocação, mormente por via da extrema violência (que estiliza com os requintes de malvadez de um demiurgo de dentes aguçados). Ímpeto visceral que obviamente não é tudo: afinal, provocar é muito mais do que chocar.

Era Uma Vez …Em Hollywood, a nona vez em que Quentin é Tarantino, e digamo-lo claramente, é a sua mais brilhante criação até à data. O filme é tão bom, aliás, que apetece que seja o último. Mais, é necessário que não volte a fazer outro. Algo que soa a heresia, mas que antes pretende ser a maior das homenagens. O reconhecimento do Mestre, olhando de baixo para cima para quem se instalou perene e decisivamente no topo da montanha.

Sem amarras políticas determinantes, como as de Inglorious Basterds (não podem restar dúvidas de que lado estão os nazis; é simples, estão no outro lado) ou as de Django Unchained (a escravatura, ou melhor, o pecado original da América, nação multicultural que assentou parte das fundações no racismo absoluto; a ideia de poder legalmente possuir um ser humano institucionaliza o conceito, obriga a classificar o imperdoável, enfim, leva vai mais longe o raciocínio), pode finalmente trabalhar a provocação como lhe apetece, sem restrições. Unicamente dentro da liberdade do cinema, por assim dizer.

E como faz o que quer sem reservas, surgem os esperados problemas, só que agora, sem o álibi do grande tema (escravatura, nazismo), enorme peso até para um Mestre, a polémica instala-se em torno do fútil, aumentando, assim o cremos, os níveis de gozo. Já não importa o uso e abuso da palavra maldita ou a visão do judeu como um indomesticado vingativo, temas sensíveis e digamos que justos, mas sim o prosaico: a arrogância de Bruce Lee ou o pouco tempo de ecrã de Margot Robbie quando comparado com o do par DiCaprio/Pitt, por exemplo.

Enquanto se faz caminho, pois a coisa tem de ir por algum lado, o filme flui na sua dimensão própria, imune a olhares hirtos e, como tal, a leituras literais. Se há cineasta que entende o potencial (onírico) do cinema como elemento maior de correspondência (relativa) com a realidade é Tarantino, que se ergueu / estruturou / construiu, como sabemos, acima de tudo enquanto espectador. Sabe os sonhos que tinha antes de começar a escalar a montanha, do mesmo modo que não lhe escapam as pequenas e grandes ironias do estrelato (dupla perspectiva – fantasmagoria e facto – i.e., antes e depois de). A partir daqui, o talento superlativo não pode esquecer as duas virtudes (por efeito de projecção) que o consomem, feitiço e desencanto em partes semelhantes, e como tal num equilíbrio ténue, sendo que a representação do feitiço é o fascínio pelo que é pop, e a representação do desencanto é o posicionamento político. E aqui convém referir que a magia do cinema de Tarantino assenta, precisamente, na indivisibilidade entre ambas as virtudes; a forma como reúne, recicla e consolida de modo a, como alguém disse, criar algo de completamente novo, partindo, lá está, de elementos e conceitos que não o são de todo. É todo um potencial divino que está em causa, de imersão na realidade proto-fantasiosa – representação da era actual, ou seja, desde o momento de transição do modernismo para o pós-modernismo –, e que se fortalecerá se for suficientemente cool e se tornar abrangente. Daí a importância dos diálogos, a escolha de canções – criteriosa, apesar de na aparência casual – e a força dos quadros nas suas sequências. Sem a componente do sucesso, quer a ironia, quer a sua irmã mais nova, a provocação, perdem-se no mais temível dos lugares (para quem se posiciona desta forma), o esquecimento. Nessa sequência, é talvez essa a razão por que Tarantino nunca rejeita a polémica, nela intervindo sempre que pode, mesmo se lhe escapam (porque têm de escapar) razões dignas do seu talento. Vide a sua resposta à polémica em torno de Bruce Lee.

Em jeito de conclusão, afirmo que ambiguidade é o termo chave nos filmes de Tarantino, não de per si, mas como trilho, a sua aceitação como única hipótese de caminho a percorrer.

É por nos perdermos nas suas duplicidades que experimentamos o verdadeiro fascínio do seu cinema. Sim, os fucking hippie motherfuckers, são metafórica e literalmente esmagados ao longo do filme, mas haverá algo que apele mais à essência inocente projectada pelo flower power do que a personagem Sharon Tate? E que dizer sobre o plano-sequência aéreo, leve, quimérico, quando Rick, abertos os portões, é finalmente apresentado a Sharon – o desejo de pertença de Rick àquele círculo como condição intrínseca – vê-lo a encolher os braços, inflexão envergonhada e ardente, finalmente no Olimpo? Ele que chora como um bebé. Que até um bom actor (ou será que a miúda estava a gozar o prato? Ou pior, piedade?). Isto com o amigo, o que faz e não representa, o faz tudo, a caminho do hospital de faca espetada no lombo, a partir dali ao pé-coxinho e nunca mais one of the most dangerous men alive. Alguém que nunca teve uma verdadeira oportunidade, e que, ainda assim, aparenta ser o único character verdadeiramente resolvido em todo o filme.

Vale a pena tentar descodificar, é inútil ostentar o recém-descoberto mapa do tesouro aos amigos. O sorriso que inevitavelmente apresentariam seria o sorriso dos tolos. O jogo da duplicidade, nestes filmes, é também o jogo do desconforto (cruel, bem sei, por nos ser oferecido num embrulho tão apetecível), o jogo que todos os Mestres, de uma forma ou outra, sempre jogaram connosco, os ditos espectadores ideais (expressão feliz tal como foi cunhada por Umberto eco). Jogo que não nos permite encostar a cabeça no travesseiro com a sensação de missão cumprida. Jogo que força, imagine-se, o aparecimento do espírito crítico.

E como Tarantino nunca o tinha feito tão bem e tão livremente, assumimos que terá atingido o seu Objectivo (assim, em maiúscula), pelo que em bom rigor não precisamos de mais nenhum filme seu. A partir daqui resta-nos contemplar a sua essência demiúrgica no tal topo da montanha. Sabendo-o vivo e de boa saúde, claro está, disponível para realizar um filme da saga Star Trek pleno de escapismo violento, que, assim se espera, nunca chegará a dirigir.

 

Imagem de comandonoticia.com.br