27 Dezembro 2015      10:39

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E SE O SEU PRESÉPIO FOSSE FICÇÃO?

Chega o Natal e surgem presépios de todo o tipo: antigos, modernos, de barro, de madeira, de material reciclado, de papel e a juntar, a esta já grande variedade, acabam por surgir sempre outros, ainda menos ortodoxos, como o que apareceu numa localidade do Ohio (Estados Unidos); inspirado pela febre dos zombies provocada pela série “The Walking Dead?”, surgiu também uma versão zombie da cena da natividade.

Claro que houve logo quem não gostasse da “iniciativa” e que tenha criticado duramente aquela inspiração mórbida. No entanto, é recorrente o surgimento de presépios mais caricatos: uns com gatos, com outros animais, com personagens de séries ou filmes, como um presépio com os personagens saga “Star Wars” ou um outro, na Irlanda, onde três duendes típicos fazem de reis magos levando trevos, um pote de ouro e Guinness.

A cena da natividade já foi imaginada e repita das mais diversas maneiras e formas, no entanto, quer as mais extravagantes, quer as mais tradicionais, estão longe, muito longe daquela que terá sido a real.

O Natal, tal como outras celebrações religiosas, é um ritual social e que mistura religião, paganismo, cultura e folclore, logo, muito da história do nascimento de Jesus está envolto em incorreções históricas e em sentido diferente daquele a que nos veicula a Bíblia.

Os três reis magos, o nascer num estábulo, a família muito branquinha e magra… tudo isto está bem longe daquilo que terá acontecido na época (recentemente saíram notícias sobre uma nova e supostamente mais correta composição corporal de Jesus e já antes se colocou em causa a figura física de Jesus promovida pela Igreja Católica).

Esta culturalização de uma cena da Natividade mais incorreta nasce de séculos de especulação sobre a cena, de mistificações, histórias contadas vezes e vezes sem conta como se fossem verdades universais e até de reinvenções artísticas. Quanto mais tempo foi passando, mais a realidade se afastou.

Por exemplo, uma das situações divergentes é a questão do estábulo, quando em Belém, na Palestina, se celebra o nascimento de Jesus na Igreja da Natividade construída no local da gruta da Natividade.

Na Bíblia existem passagens que descrevem a chegada de Maria e José a Belém, uma viagem a que foram obrigados para participar num recenseamento, não havendo um único quarto, uma única casa, onde José e Maria – grávida - pudessem descansar.

Mesmo a cena do nascimento numa gruta é improvável e é quase certo que tenha nascido no nível inferior de uma casa de parentes ou conhecidos, sendo que, à época os animais - de modo a que não fossem roubados, à noite – eram guardados nos níveis inferiores das casas.

A imagem criada, ao longo dos séculos, de Maria, José e Jesus, num estábulo, e sob as estrelas é, obviamente mais ternurenta e comovente, e a presença dos animais ajuda a pintar a imagem idílica.

São muitos os presépios onde são os pastores quem levam as ovelhas, onde os reis magos chegam de camelo… e sobre esta imagem, o próprio Papa Bento XVI admitiu que, nos Evangelhos, não há relatos da presença de animais, como relatou no seu livro “Jesus de Nazaré: a infância em narrativas”, e onde diz que, a haver presença de animais, não se consegue dizer quais.

Jesus a nascer num cenário idílico e humilde, cercado das criaturas de Deus, promoveu uma visão de harmonia e paz, mas há a possibilidade de não existirem sequer animais presentes aquando do nascimento.
O animal mais comum nos presépios é o burro, até porque a sua presença ajuda a veicular a imagem de Maria sentada no burro, a caminho de Belém, enquanto José o puxa com uma corda.

No entanto, a Bíblia, não refere o meio de transporte utilizado, embora, e dado o estatuto social da família, o burro fosse o meio de transporte mais provável, sendo que não estará fora de hipótese o poderem ter viajado numa caravana, algo que seria muito mais seguro na época.

Mas uma falha ainda maior pode estar relacionada com as pessoas e não com os animais.

Comecemos pelos reis magos, bem vestidos e cheios de riquezas; na Bíblia existe a referência a “sábios” que viajaram do Oriente ao seguir uma estrela cadente. A interpretação de mago ou sábio, à luz da época, seria provável que se referisse a tipo de clérigos persas (região do Iraque) e que eram, muitas vezes, estudantes de astronomia e não “reis” cheios de riquezas, facto que, certamente, viria referido na Bíblia.

Facto é que, existe uma correspondência de datas e acontecimentos entre o nascimento de Jesus e um acontecimento astronómico anormal – com a devida margem de erro provocada pelos séculos.

A imagem dos “reis-magos” surge, curiosamente, no Renascimento e ajudou à representação da cena perfeita.
Outro ponto ligado aos reis-magos é a quantidade. Quantos eram? A representação que nos chega diz que eram três, e até sabemos os seus nomes: Belchior, Gaspar e Baltazar. Diz-se inclusive que levavam ouro, incenso e mirra. Quer a quantidade, quer o que levavam, quer os nomes são meras conjeturas.

Certamente que ter “reis” terrestres a oferecer riquezas a Jesus, rei do Universo, terá ajudado ao engrandecimento – embora que meramente simbológico – da figura de Jesus.

Mas o maior problema dos presépios comuns e tradicionais é mesmo o de – essencialmente no Ocidente – se terem feito representar as figuras de Maria, José e Jesus à nossa imagem racial, são, normalmente, figuras de porcelana com estaturas proporcionais às nossas, cores de pele claras, de caras rosadas e olhos claros, e, por vezes, chegam a ser representados loiros. Esta é representação de Jesus com uma imagem mais europeizada, é algo que nos chega, novamente, da época renascentista e que ajudou a impor a imagem cultural dos “brancos” como uma raça e cultura poderosa e envolve-se de simbolismo ao relacionarmos o branco com a pureza, o bem e a sabedoria e o preto com o pecado e o Mal.

Curioso é que nas versões da Bíblia que nos chegaram não existe qualquer referência à fisionomia de Jesus, nem da sua família, facto que pode ter sido um fator crítico e que proporcionou uma vantagem à cristianização da Europa e do Ocidente e ajudado a converter pessoas de todas as raças e cores.

Ponto assente entre historiadores e estudiosos é que a fisionomia de Jesus seria a de homem comum do Médio Oriente, de tez, cabelo e olhos escuros.

Todas as tradições culturais são alteradas com o passar do tempo. E é com essa mesma passagem do tempo que as géneses, as verdades, as origens das histórias e culturas acabam por perder-se.

É compreensível que, no caso da representação atual do presépio e da cena de Natividade, se cometam erros inocentemente ou que nem sequer nos questionemos sobre a veracidade dos acontecimentos. O problema é que se corre o risco de se aceitar a representação como real, como facto histórico, quando não é.