20 Fevereiro 2016      02:53

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DA MEMÓRIA DAS COISAS

"PARALELO 39N"

Às vezes, não raro, dou por mim a pensar nas coisas. Penso no dia que começou, se for de manhã. Penso na noite, se for de tarde. Penso em quase tudo e não penso em nada ao mesmo tempo. Por vezes, nessas alturas em que estou a pensar nas coisas que foram, nas que não foram, nas que podiam ter sido e nas que foram, mas não aconteceram da maneira que gostaria, surge um lapso de memória. Visualizo uma planície que é interrompida e substituída por altos edifícios de uma cidade que parece agressiva, mas não o é, e fecho os olhos pensando em que dia da semana se podem comprar, na cidade, os vegetais que são cultivados na planície. 

 

Das coisas que tenho memória, nos últimos 36 anos, muitas são o cultivo dessas coisas, esse caminho percorrido que fica na memória em rasgos esbatidos, nas caras e nos rostos, em pequenos pormenores que, em outra altura, passariam despercebidos. Nada passa despercebido na memória das coisas, fica escondido num local da memória, no centro das coisas, no universo do mundo que está dentro dele e baralha tudo. A vida, no centro das coisas, eleva-se à memória e senta-se nela ofuscando os momentos mais escuros na vida das pessoas.

 

Há dias em que me sento numa pedra e descanso. Olho o fundo do vale que me espera e deixo a mochila ao meu lado, abro a garrafa de água e, depois de vários goles para matar a sede, abro o envelope onde guardo as notas e a memória das coisas. O vale parece-me ao mesmo tempo verdejante e castanho, queimado pela seca do verão que teima em não acabar. Aqui, do alto da montanha, onde o frio é mais forte e o vento bate generosamente no casaco impermeável que me acolhe, vejo o vale em cores. Uma progressão que é como a vida de uma pessoa.

 

Lá em baixo, mesmo no fundo, sobressaem pequenos pontos brilhantes. Não sei se quartzos, se diamantes, se somente a memória das coisas que, quando por eles se passa, se aviva e nos faz lembrar dos momentos de progressão na nossa vida. Houve já quem dissesse, a cantar, que somos como um rio, que corremos sem parar. Seremos, porventura, muito mais do que isso. Seremos cada molécula da memória dos elementos químicos da água, seremos protões e neutrões, pontos camuflados e unidos por uma força impressionante que nos faz abrir e fechar os olhos, ao mesmo tempo que as lágrimas nos caem, impulsionadas, tantas vezes, pela memória das coisas.

 

As pedras não têm memória. Esta, onde me imaginei sentado, não se lembrará de mim nem da minha estada ficará registo. Feita de superfície dura e fria, a pedra não é moldável às coisas. Talvez só mesmo essa água que vemos no rio e que também somos, em oitenta por cento da nossa constituição, possa furar a pedra e deixar a marca da memória das coisas. Quanto a mim, consciente da limitação inexoravelmente inerente à minha condição, rascunho nessas folhas que tirei do envelope e são o prolongamento da minha memória, as coisas que vejo e quero lembrar no futuro.

 

Anoto, num papel timbrado, como se inscrevesse na pedra, a minha memória e há tanta coisa que poderia dizer… sobre o vale, as águas, sobre mim e sobre aquilo que é a memória das coisas.