17 Agosto 2021      10:14

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Carta aberta às mulheres afegãs

É demasiado grande o embaraço e o desconsolo de um ocidental, quando olha para aquilo que vos está, novamente, a acontecer.

Ver os talibã, 20 anos depois, reconquistar o poder de forma total no Afeganistão só me pode enojar e embaraçar. Por saber o que este regime, outrora, vos fez passar e sentir, a repressão, a subjugação, a arbitrariedade de um pensamento totalitário que humilha, mal trata e despreza a mulher como que um animal reles e vulgar, que existe para satisfação e prazer de um dono, que no momento em que deixar de se sentir saciado e agradado pode, “perante a lei de Deus”, repudiar esse objecto “fora de prazo” e condená-lo à miséria humana, à prostituição clandestina, ao tráfico humano, à violência sexual, à morte...

Por saber que centenas de milhares de raparigas não poderão mais ir à escola, porque num regime talibã não há lugar para uma mulher numa escola, numa universidade, ou em qualquer outro sítio onde uma arma como a educação lhes possa ser oferecida como instrumento de independência, uma mulher, num regime talibã não pode sequer sonhar com o significado de tamanha expressão.

Por saber que todas irão voltar a estar sujeitas a leis medievais como apedrejamentos públicos ou amputações de braços, por delitos muitas vezes falsos, baseados em boatos e rumores, e totalmente arbitrários, em julgamentos feitos sem primazia de prova e submissos às pressões dos rumores e da corrupção endémica deste tipo de regimes.

Por saber que nós, ocidentais, entrámos pelo vosso país adentro com a promessa de erradicar para sempre a perversão e a crueldade a que foram, durante anos, injustamente submetidas. Prometemos servir-vos de proteção para as gerações vindouras, para que as vossas filhas e as filhas das vossas filhas pudessem viver numa sociedade mais justa, menos cruel, menos sangrenta, menos repressiva e falhámos humilhantemente.

É humilhante hoje, à distância, recordar todos os esforços encabeçados pelo ocidente em derrubar um regime que não merecia existir, bombardeamentos aéreos, incursões militares, soldados americanos, europeus e canadianos mortos, e para quê? É a pergunta que mais devemos fazer. O que falhou para que todo o investimento feito em capital, em capacidades, em treino, mas sobretudo, em vidas humanas perdidas se esfumasse numa questão de dias.

Quem vai justificar aos pais e aos irmãos de um soldado americano tombado a milhares de quilómetros de casa, que morreu a lutar pelo seu país num país que não era o dele, para uma missão que, 20 anos depois é cobardemente abandonada e deitada ao lixo.

Quem vai justificar a morte de milhares de civis afegãos que perderam a vida às mãos do terrorismo tribalista dos talibã como esforço derradeiro de manter o seu país nas mãos de um governo que não os oprimisse?

Como foi possível um processo de libertação e de construção de um país mais justo falhar de forma tão incompetente? Vencidos pelo cansaço...

A estas perguntas, com certeza que saberemos dar resposta nos dias e meses que virão, a grande questão é se teremos a coragem e a ousadia de justificar o nosso fracasso a vocês, mulheres afegãs, que durante anos confiaram na nossa segurança, e que confiaram ainda mais, que no dia em que nós saíssemos, tudo iria continuar estável, porque confiaram nas nossas capacidades de corrigir os erros no complexo puzzle étnico-politico afegão.

Sabemos agora o quão irrelevante é, para nós, o povo afegão, um povo que entregámos de volta, e numa bandeja, à tirania, à opressão e à anulação intelectual. O que não deixa de ser irónico num mundo ocidental que se apressa a sair em defesa dos venezuelanos ou dos cubanos clamando pelo (totalmente legítimo) fim da opressão destes povos consoante a temperatura dos acontecimentos, que prontamente baixará e outro tema da espuma dos dias surgirá, para nos fazer esquecer que estes flagelos coabitam connosco.

Como tal, os meses vão passar, a temperatura vai baixar, os holofotes vão-se, ao de leve, apagando, e a nossa vida seguirá a mesma, como sempre foi, tranquila. Enquanto, que noutro lugar do mundo, uma rapariga afegã perdeu o direito a ter sonhos.

Sonhos, que nós, lhe prometemos... Vos prometemos.

 

Imagem de capa de justificando.com