Amanheceu com alguma frescura naquela manhã de sábado, pego num casaco rendado que servisse de conforto àquele nascer do dia tipicamente abrilesco no Alentejo e saio de casa ainda a debicar o pequeno almoço. No dia anterior tinha recebido uma mensagem de Robert Panda, artista plástico que vai despontando no panorama nacional, a convidar-me para acompanhar um evento que estava a organizar, o 2º Encontro de Arte Rupestre, enquadrado numas festas sazonais da vila.
Sabia muito pouco do que se iria passar, não era propriamente versado em encontros de arte rupestre, e de casaco vestido chego ao local combinado, onde Robert Panda se encontrava com toda uma “crew” de artistas de graffiti, que não era, em si, uma crew qualquer, era nada menos que a crew mais antiga desta arte urbana em Portugal, que deu início e propulsão ao movimento do graffiti no país ao longo dos anos 90 na região de Lisboa. O plano? Pegar nestes 10 artistas – que hoje se notarizam e fazem vida noutras artes, desde a escultura, ao CGI e aos murais urbanos – e levá-los a visitar a gruta do Escoural, absorverem todo o contexto pré-histórico que envolve o lugar, observarem as várias pinturas rupestres, para que, durante o resto do dia, e no dia seguinte, dessem vida a um mural de cem metros com a sua arte de um movimento artístico do final do século XX, inspirada nas artes de movimentos artísticos de há 50 mil anos.
“Bombing”, termo do qual nunca tinha ouvido falar anteriormente, era isso que estavam ali para fazer, disseram. O bombing não é nada mais que uma forma de expressão artística no mundo da arte urbana que consiste numa monumental assinatura pessoal do artista pintada numa superfície qualquer em jeito de afirmação que significa, no fundo, “eu estive aqui”, uma forma de hiperbolização da assinatura que o artista confere à sua obra, transformando esta, na própria obra de arte. Um estilo que marcou todo um movimento artístico que surgiu, como quase todos, na marginalidade e na não aceitação social.
Em determinado momento da visita ao espólio pré histórico, envolvido por um ambiente de média luz amarelada, por entre reentrâncias e passagens estreitas que requerem um exigente agachamento, sobressai, numa das paredes da cavidade, uma pintura rupestre para a qual o arqueólogo que os guia aponta uma pequena lanterna de mão, e descreve uma forma de um olho, cuja ornamentação e formato se assemelham muito a um olho de Hórus invertido, o qual é acompanhado de três riscas diagonais. A esta pintura é-lhe conferida uma interpretação arqueológica que especula que se possa tratar de uma espécie de assinatura pessoal, como que de um caçador-recolector que, no meio de uma caçada ou batalha, terá ficado com 3 cicatrizes na face e que, porventura, utilizaria aquela simbologia para afirmar a sua marca e a sua presença em determinado local, ou seja, uma forma de dizer “eu estive aqui”, o que é, no fundo, “bombing”! Com 50 mil anos…
Há no filme “Interstellar” – brilhantemente realizado por Christopher Nolan – uma cena onde Cooper, interpretado por Matthew McConaughey, entra pelo wormhole adentro, e ao longo desses momentos de turbulência e descontrolo da nave naquele túnel cósmico onde todas as leis da física se contorcem, surge uma silhueta de uma mão distorcida que entra pela fuselagem da nave até à cabine, a qual, Amelia, uma das astronautas, aperta por segundos, uma mão que surgia de uma outra dimensão do espaço-tempo por eles desconhecida, onde duas percepções, dois tempos e dois lugares se tocaram, interagindo.
Semelhante acontecimento se deu naquele momento, na obscuridade daquela gruta escondida no meio das montanhas da serra de Monfurado, camuflada na vastidão do Alentejo, onde, através da arte, a mão de um artista pré-histórico se estendeu aos artistas contemporâneos vinda de outra dimensão da arte, outra percepção, outro tempo, para que estes, embevecidos, se sentissem compelidos a apertá-la, num inspirador cumprimento de milénios, que lhes condimentaria o espírito para compor a obra que iriam transpor para o mural que os esperava.
Numa realidade portuguesa, onde o futebol e o entretenimento básico, esvaziado de qualquer nexo e substância se torna, a cada dia que passa, numa inquestionável toxicodependência servida 24 horas por dia ao cidadão, surgem esporadicamente leves raios de luz que, contra todas as marés, tentam oferecer um ténue rasgo de cultura às multidões. Esta iniciativa teria tudo para ser menosprezada antes sequer de nascer, não lembraria a ninguém, convidar um grupo de graffiters para um encontro de arte rupestre, para ser produzido um mural como produto final de um encontro do género.
Todavia, é na palavra “encontro” que jaz a chave de tal exótica ideia, o encontro não seria de artistas, mas sim, de artes, o encontro da arte antiga com a arte moderna, o encontro da mística pré histórica com a irreverência contemporânea, onde duas artes colidem entre si por forma a fazer surgir uma obra autêntica e única de arte urbana dos tempos modernos, condimentada com rasgos quiméricos da arte de homens e mulheres que partilharam aquelas terras com ursos e auroques há 50 mil anos e que, algures no tempo, numa gruta escura, com um pau a arder apontado a uma parede tentaram, à sua maneira dizer, “nós estivemos aqui”, inspirando em 2023 um grupo de artistas modernos a responder, “nós também”, “vimo-vos”, “testemunhámo-vos”, “imaginámo-vos”.
É certamente um conceito avant-garde e abstracto, e sê-lo-á ainda mais numa pequena localidade do interior, mas é, no fundo, cultura na sua essência mais profunda e polida, um leve raio de luz que força a sua passagem por entre densas trevas de insignificância, futilidade e superficialidade com que somos diariamente servidos nas mais variadas fontes de comunicação, numa tentativa quase ingrata de levar essência e alma a quem, no interior do país, dela necessita como da água para matar a sede num árido deserto de ausência de ideias e de dinâmica intelectual.
Naquele dia, naquela vila, naquele contexto, a cultura brotou, e num rebelde acto de bombing disse:
“Eu estou aqui”.