29 Novembro 2015      10:40

Está aqui

PAPAGAIOS AMESTRADOS E OUTRAS PERSONAGENS

Ainda não estou eu totalmente recuperada do flagelo dos comentários xenófobos e racistas aos refugiados quando, repentinamente, cai outra calamidade no seio da opinião pública portuguesa: vão acabar com os exames de quarto ano. – Pela forma como falam disso parece até que o céu vai cair, muito ao estilo do juízo final na Bíblia.

Mas porquê? – Não pergunto porque vão os exames terminar, note-se. Isso eu compreendo e bem. Pergunto porquê todo este desfile de baratas tontas gritando aos sete ventos que a pátria portuguesa, no futuro, vai estar condenada ao fracasso (no futuro?). A resposta é simples e surge-me em toda a troca de palavras entre adeptos da esquerda e da direita política. Não é entre pessoas, não é entre professores, pedagogos, psicólogos, sociólogos (que veja-se bem é quem entende melhor do tema) é entre apoiantes partidários.  – Isto, por si só, chega para compreendermos o valor dado à educação em Portugal, transformando uma questão educacional numa campanha política. Isto, por si só, chega para compreendermos porque temos indivíduos que escrevem ‘forsa!’ no seu discurso apetrechado de ofensas afectadas ao defender a realização de exames no quarto ano de escolaridade.

A verdade é que pouco lhes importa perceber novas demagogias e sistemas de ensino; o que importa é cismar numa birra, uma guerra de berço onde as trincheiras são formadas por adultos que estagnaram no tempo e nas ideologias (nem nas suas, nas dos seus avós!) onde lhes diziam: “tens que aprender essas contas para ajudares lá na mercearia. E não te esqueças, a direita é que é boa! (ou vice-versa)”.

E eles lá aprenderam e hoje lá vão repetindo o que os pais lhes disseram para eles não se esquecerem e cismando que o único caminho correcto é o caminho que eles fizeram. – Porque ao menos esse eles sabem que correu bem. Podia ter corrido melhor? Até podia, mas ninguém lhes disse como fazer.

Ninguém lhes disse como fazer. Esta é a frase na qual devemos pensar porque é a frase que reflecte o nosso sistema de ensino. Desde o berço pais, mães, avós, avôs dizem-nos, da mesma forma que aprenderam, às crianças: “Tens que ser do Benfica, porque o Benfica é o melhor”; “tens que dar um beijinho à vizinha porque é boa educação”; “tens que brincar com Barbies porque os Legos são para meninos”; tens que, tens que, tens que! E, se neste momento já lhe está a parecer horrenda esta repetição, que dizer de quando chegam à escola e os professores, cumprindo apenas ordens superiores, os fazem recitar a matéria, muitas vezes até com melodia, para que seja mais simples de decorar? O que dizer da forma como nos é contada, por exemplo, a história? Apenas uma faceta, uma forma de olhar, a sentença de um lado. Pois que no outro, de outras perspectivas não dá muito jeito falar. – Não fará lembrar algo, isto? Não fará lembrar a política de informação seleccionada que os regimes fascistas operavam, talvez de uma forma mais passiva e dissimulada? – Deixo ao vosso critério os juízos de valor.

Voltemos à palavra decorar. Existem animais irracionais que decoram e posteriormente imitam o que foi dito. Existem animais irracionais como papagaios que no fundo passam a vida inteira a proferir as 3 ou 4 frases que o dono diz com mais frequência. Depois existem animais racionais que fazem o mesmo durante toda a vida só que num espectro mais alargado de conteúdo. Nesse mesmo conteúdo insira-se toda a informação tendenciosa que passa nos nossos telejornais, todas as expressões brejeiras que emanam dos programas de baixo teor educativo da programação nacional, toda a intriga sensacionalista entre pólos de opinião e escândalos. Insira-se também a crença na verdade total de uma única perspectiva, de um único tipo de inteligência, de uma suprema verdade.

No fundo, consigo compreender a necessidade de uma racionalidade de pouco raciocínio: é mais confortável para os líderes, é mais confortável para os paradigmas sociais, é mais confortável para um ideal conformista. E um ideal conformista é um ideal parado, um ideal que diz: se tem que ser assim que seja. Mas esse ideal já não chega para solucionar todas as questões que surgem no mundo actual. Actualmente precisamos de pessoas que perguntem: mas porque é que tem que ser assim, porque não de outra forma?

Einstein já dizia que se julgarmos um peixe pela sua capacidade de subir a uma árvore o pobre peixe vai achar eternamente que é burro. O que Einstein se esqueceu de dizer foi que esse peixe só se acha burro porque uma sociedade inteira de peixes lhe diz que ele o é. E que essa sociedade é apenas fruto de fórmulas temporais, históricas e económico-sociais que estão sujeitas ao ajuste do tempo e da mentalidade. A mudança é a medida para a manutenção tanto quanto a ruptura é a medida para a mudança. E, ainda que a ruptura possa não parecer bela e equilibrada, ela é necessária.

Precisamos de rebeldes conscientes. Rebeldes que saibam que a rebeldia é a primeira arma com que se combatem autoritarismos declarados e disfarçados. Precisamos de crianças que saibam pensar e não de crianças que saibam o que pensar. Precisamos de crianças que cheguem a casa e perguntem ao avô, à avó, ao pai, à mãe: “Porque é que o Benfica é o melhor?”, “Quem disse que uma palavra amiga não é de tão bom tom quanto um beijo?”,  “Onde é que está escrito, quem é que escreveu que as meninas brincam com Barbies e os meninos com Legos?”

E crianças assim, rebeldes conscientes, animais racionais que usam do raciocínio não se obtêm através de apenas e meras provas para papagaios amestrados.

Antes de mais, saibamos ser inteligentes na forma de olhar. Depois que sejamos inteligentes na forma de discutir porque para personagens de pensamento delimitado e crenças faccionárias bastam-nos as que temos já em excedente.