17 Outubro 2015      10:46

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FONTES

De repente, esta manhã, no meio de pensamentos vagos, repete-se, na minha cabeça, uma canção que ouço já desde a infância. Fogem-me os pensamentos para o Alentejo, outra vez, e para os tempos em que em cada vale havia uma fonte que guardava as águas vindas das nascentes dos montes. Em que o correr contínuo da água, vinda dos confins da terra, se juntava à restante, cristalina, que já lá estava a repousar. Ao lado, um cocharro feito à medida dos que por lá passavam e saciavam a sede. Faz-me lembrar uma canção, dessas que se ouvem nas tascas, cantadas a despique. Faz-me lembrar o tempo em que, na parte mais fresca do monte, escondidas dos 40 e tal graus do Alentejo no verão, havia uma fonte que me chamava. E foram esses pensamentos e essas imagens que agregaram a canção, em todos os seus versos, uma história que se pode contar.

Fui à fonte beber água numa tarde soalheira de verão, quando só se ouviam os sons contínuos das cigarras e eu estava perdido no meio do Alentejo, sem que levasse comigo qualquer cantil para saciar a sede. Não por esquecimento, mas pela impossibilidade de o transportar nas minhas mãos carregas de intenções. Mas fui ao rio para te falar, porque muito haveria a dizer entre nós, nos meus pensamentos vagos que me recordam a infância e o barulho das cigarras e os pássaros que se calam nas horas de mais calor. Nesse trilho criado entre a montanha e a ribeira, já seca. Nem na fonte nem no rio nos encontrámos, nem lá no sítio que existe nem nos meus pensamentos. Nunca te pude encontrar.

Dá-me uma gotinha de água, dizia a canção em todo o seu esplendor e em coro, mas não era uma água qualquer. Era uma água de todas as fontes, de todos os recantos, os segredos, os mistérios. Era uma água meio silenciosa, meio contínua e sensível aos meus ouvidos, era uma água dos meus pensamentos e dos meus sonhos, dos meus desejos e do meu esforço em superar-me. Era uma água que, quando fecho os olhos, é dessa que eu oiço correr.

Entre pedras e pedrinhas, dizia-me a canção, alguma gota há de haver. Bem sei que as pedras são imóveis e inertes. Assim são os meus pensamentos vagos e a necessidade de me superar. Não quero ser inerte nem imóvel. Quero desafiar os desafios. Quero superar-me nas intenções de ser mais alto, de me escrever cada dia e de provar dessa água de inspiração, em todas as fontes. As pedras são o caminho que a água traça nelas, formam aquilo que a água desenha e, nelas muitas vezes se esconde, como se escondem os nossos sonhos. Alguma gota há de haver, nem que seja a suficiente para me alimentar o pensamento de chegar à próxima fonte.

Quero molhar a garganta, nesses campos perdidos do Alentejo. Quero que a água que bebo, que me hidrata o corpo e me faz continuar além dos campos do Alentejo. Quero que a água que levo dos campos, na memória, me sacie a sede em sítios tão diferentes do mundo. Que o som contínuo da água a correr seja também o vinho que bebo aqui deste lado quando me lembro do sítio de onde vim. E quero molhar a garganta com as palavras que, ditas ou escritas, me fazem lembrar de onde vim e quem sou.

Quero cantar como a rola canções do meu imaginário, mas em surdina porque não há na minha voz a capacidade de cantar nem imitar o som dos pássaros no meio dos montes. Verdade é que como a rola ninguém canta, nem serei eu a cantar essas canções. Decido pô-las por escrito, nos versos perdidos de um texto escrito para o fim-de-semana.

Foi e será sempre nessa tentativa de cantar escrevendo, de molhar a garganta e encontrar a gotinha de água que, igual a tantas outras, numa fonte também ela igual, mas diferente, que encontro a inspiração dos dias e que me digo fui à fonte beber água, procurando encontrar o cocharro deitado ao lado do combro que protege e segura a água, mas, no lugar dele, achei um raminho verde, lembrando-me que, mesmo no meio da maior seca e no terreno mais inóspito, há sempre uma réstia de esperança que persiste e sobrevive nos nossos pensamentos. Quem o perdeu tinha amores, daqueles sobre os quais tantas páginas já se escreveram no mundo e tantas mais se escreverão, pois não há uma resposta para as perguntas que se fazem no amor. Quem o achou tinha sede. Sede de ser e de viver.

 

(Ouça, na voz de António Zambujo, a moda que inspirou esta crónica.)