12 Julho 2015      10:29

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E SE A MORTE FIZESSE UMA PAUSA?

“Neste monte, Ele arrancará o véu de luto que cobre todos os povos, o pano que encobre todas as nações. Aniquilará a morte para sempre” (Is. 25,8)

E se não houvesse morte? Se as pessoas simplesmente deixassem de morrer? Após séculos e séculos à procura do elixir da juventude, buscando sem fim um meio de deter o tempo, julgando escapar às suas presas, eis que Saramago nos diz nas Intermitências da Morte que é necessário morrer. Porquê? Ninguém quer morrer. No entanto, por uma infinidade de razões, a morte, além de ser parte da vida, torna-se imprescindível e surpreendentemente desejável, nem que seja de um ponto de vista sanitário. Pois, infelizmente, a ausência de morte acarreta danos colaterais, como era de esperar.

Assim, por um lado, entre as implicações demográficas, económicas, ontológicas e até territoriais surge a maphia, uma rede organizada de “amantes da ordem e da disciplina” que apresenta uma solução marginal de resolução transfronteiriça do problema.

 Por outro lado, a ausência de morte tem repercussões filosóficas e religiosas consideráveis, entre outras, os fundamentos, não só da Igreja Católica, mas da própria fé cristã, que acabam por perder a sua pedra basilar. Se não morremos, em que assenta então a mesma? Sem morte, não faria mais sentido ser temente a Deus nem teria significado a própria noção de pecado. Por conseguinte, o fundamento da Igreja Católica seria extensivamente questionado, ou pior, contestado, já que sem morte não é necessária a garantia de uma vida melhor no além.

E a morte, o que é? Ou melhor, quem é? Aparece-nos como uma personagem omnisciente, omnipresente e omnipotente, mas não será errado dizer que a extensão dos seus poderes tem efetivamente um limite, na medida em que, apesar de ser equiparada a uma entidade divina, também ela, tal como os humanos, está sujeita ao erro até pelos mesmos motivos burocráticos e não há simplex que lhe valha.

De resto, essa morte, personificação por excelência dos vivos, tem consciência, sabe que erra e tenta emendar os seus erros; tem voz, perde-se em monólogos a que a gadanha nem ousa responder, porquanto leva um duro fardo: por um lado, o peso da responsabilidade inerente ao seu ofício e a frieza com que o deve encarar e, por outro, o desejo de ser amada.

Manipulando habilmente o sarcasmo, o autor vai nos subtraindo sorrisos ao longo da obra, tecendo uma dura crítica à sociedade moderna, de que ninguém escapa impune: as funerárias, as seguradoras, os media, o Estado, a Igreja e até as famílias afetadas pela ausência de morte.

Assim, a partir de um suporte diegético cronológico baseado numa realidade corriqueira, que serve de pretexto a uma visão profunda e penetrante de uma realidade improvável, somos obrigados a colocar questões que nunca antes tinham aflorado: e se deixasse de haver morte? Por que motivo deixaria de haver?

Saramago responde centrando inesperadamente a sua abordagem na dialética amor/morte, temas que se entrecruzam tanto na vida como na ponta da pluma e, redondamente, com chave de ouro, parece fechar-se um ciclo: “No dia seguinte ninguém morreu”. No entanto, não é exatamente o que acontece. Falar-se-ia, sim, de uma estrutura helicoidal em que, sem se fechar sobre si mesma, a diegese progride, contra todas as expetativas, no vórtice da disputa entre o Eros e o Thanatos.