14 Junho 2015      11:16

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(DE)GRADAÇÃO EM TONS DE CINZA

No verão passado, em Brasília, numa daquelas maravilhosas tardes de dolce fare niente, a minha gêmea resolveu passar para o meu leitor uma série de e-books de que dispunha, sendo um deles “As Cinquenta Sombras de Grey”. Confesso que já tinha ouvido falar do livro como sendo o último must have das donas de casa que procuravam apimentar a sua vida sexual. E logo aí, associei-o, na minha mente perversa, a práticas sadomasoquistas dignas de envergonhar Rasputin.

E foi assim, apesar de não ter sentido particular interesse no livro, numa noite de tédio, que comecei a leitura, cedendo ao ímpeto ingénuo de seguir o jovial rebanho.

Li-o em pouco tempo. Não posso dizer que não se leia bem, mas… Por onde começar?

Na verdade, em virtude de o tempo não ser algo que tenha de sobejo, dado a quantidade de ocupações extraprofissionais que tenho, tinha jurado a mim mesma que o tempo dedicado à leitura não poderia em nenhum caso ser desperdiçado. E, de olhar baixo e faces ruborizadas, admito que não cumpri o juramento.

No que respeita ao sadomasoquismo propriamente dito, e começando por aí, infelizmente, nada me surpreendeu, chocou nem causou repulsa (e acreditem que não sou perita no assunto). Mais vos digo. Eu, que esperava ter que empreender várias incursões ao dicionário e que esperava sadomasoquismo hardcore numa escrita dura, intransigente, perentória, sem piedade nem pudores, abraçando uma trama difícil de deslindar e culminando num final surpreendente, só tive direito a uma narrativa pateticamente sentimentaloide entre uma jovem pobre, Anastasia Steele, e um jovem rico, Christian Grey, fermentada numa escrita fácil, corriqueira e cansativa.

No que diz respeito à trama, para além de repetitiva, é triste. Diria mais: é um drama tamanha sobriedade diegética. De facto, pouca coisa escapa do funil cronológico e o leitor aborrece-se.

Apesar de me dizerem que não entendi bem o livro “porque, no fim, a jovem vira dominadora” (excelente exemplo de interpretação excessiva) e é ela que resolve afastar-se, só posso mesmo é lamentar que a Anastasia não tenha apresentado queixa na A.P.A.V.

Porém, a jovem não põe fim à relação porque o amado a trata como um objeto nem por ser vítima de abuso, mas sim porque se apercebe que o seu amor não é correspondido (e aí, pela primeira vez, emocionei-me perante tamanho absurdo). De facto, se a amasse de volta, não haveria problemas e a jovem continuaria a aceitar alegremente o contrato celebrado entre ambos (referindo que ele é quem manda e ela só tem que aceitar o seu papel de dominada), aforrando as migalhas de afeto que lhe atira em troca de umas boas palmadas.

No século XXI, não me choca que apareça um livro desse gênero, de todo, e como provavelmente entenderam, tampouco me constrange o sadomasoquismo, o que me causa certo incómodo é que este livro seja um best-seller, cuja saga ainda vende, e cujos leitores que não concordam com o facto de tal livro representar um atentado aos direitos das mulheres se desculpem dizendo que “a rapariga no fim é que vira dominadora”. Não, meus amigos, no fim do livro, consegue a duras penas livrar-se da dominação psicológica de que é vítima, só isso.

Como devem poder calcular não tenho grande vontade de ver o filme (provavelmente pior que o livro) e muito menos de ler o resto da simplória saga, pois, à semelhança das telenovelas, os jovens atam, reatam e até vivem juntos, pelo que pude constatar nas contracapas dos restantes volumes (só falta o casalinho da praxe e as férias no Algarve).

A modo de conclusão, acrescento que de simplórios não poderão ser qualificados os editores que sabem que não se mexe num negócio em ouro e refundem o conto da gata borralheira, mais conhecida como Cinderella (do inglês cinder que significa cinza), na história de Anastasia Steele, jovem ingénua e inexperiente, apaixonada por um homem que pensa noutro tom, numa (de)gradação em tons de cinza.