22 Agosto 2015      13:17

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CONTO II

Durante o mês de Agosto presenteamos os leitores com um conto de ficção, sobre uma investigação contada pelo testemunho de um dos seus protagonistas, que se passa num verão quente do Alentejo. Uma história contada em quatro partes ao longo deste mês, pelas palavras de um inspetor frio, reformado, que relembra quando foi chamado para resolver o desaparecimento de uma criança em 2004, da autoria de João M. Pereirinha.
 

 

ARQUIVADOS

SEGUNDA PARTE

 

- Não estava perante um desaparecimento, aquilo parecia mais um homicídio sem corpo, uma completa borrada: os pais continuavam a contaminar a cena do crime; entretanto foram buscar um padre exorcista da zona não sei com que pretexto e estava fechado numa cela à espera de ser interrogado há horas; as buscas no terreno não tinham avançado mais do que meio quilómetro; havia caçadores aos tiros em montes ali próximos e ninguém se tinha lembrado de fechar as fronteiras… Mais do que nunca tudo aquilo me parecia perdido. Quando me passaram as informações da família, ainda pior: só viviam ali há menos de um ano, ela era natural de uma outra vila a vários quilómetros dali, e ele era ucraniano. Tinham-se mudado desde que ele arranjara trabalho na serração.

- O que é que resolveu fazer?

- O que é que eu fiz? Meti os pais dentro de um jipe da GNR, disse-lhes que ia ficar tudo bem, mas a mulher não parava de chorar e ele mandou-me um olhar gélido, quase indiferente, denunciava que sabia da minha mentira mas sabia que eu só queria acalmar aquele berreiro, e dei ordens que fossem para o quartel mais próximo e ficassem lá sem comunicar com ninguém, mas sem serem presos, até que eu voltasse.

- Suspeitava dos pais naquela altura?

- Nada, além daquele espetáculo de gritos e choradeira, me dizia que os podia excluir de terem sido eles a fazer alguma coisa à miúda. Além disso, aquilo tudo estava-me a dar dores de cabeça, estava a explodir e não tinha a certeza se era do barulho, se da incompetência ou da ressaca. Provavelmente era tudo misturado. Pedi também que recolhessem testemunhos dos vizinhos, dos donos da casa, o que tinham visto, o que tinham ouvido, enfim… mas sabe para que é que isso serviu? Para nada… cada um dizia o que lhe apetecia, faziam juízos de valor porque eles não iam à igreja; porque eles não eram portugueses; porque isto e porque aquilo… sobre a beleza da menina, “era um anjo”, dizia uma velha cínica que se topava que estava a mentir…

- Estava a mentir porquê?

- As outras vizinhas diziam que ela não se dava bem com ninguém e muito menos com eles, era uma alcoviteira, e esforçava-se demais no tom de voz, na forma como olhava para quem a interrogava, era óbvio que o excesso de elogios não passavam de uma forma de tentar exclui-la da investigação. Mas até então não tinha ninguém que incluir ou excluir. Precisava de falar com os pais, e saber o que se tinha passado. Precisava de saber que sangue era aquele no quarto, e de quem… Entretanto fui falar com os pais.

Ao que parece a mãe foi quem deu com aquele cenário dantesco… Tinham ido tomar café depois de jantar, num daqueles tascos com esplanada quase no meio da estrada, não muito longe, a menos de cinco minutos, e tinham deixado a menina em casa, deitada. Estava uma noite fria e ela resolveu ir buscar um casaco e foi quando deu com aquilo. Suspeitos, pessoas que não gostassem deles, objetivamente, não sabia, dívidas não tinha, brigas recentes, nada, pessoas estranhas a rondar a casa também não… enfim um beco sem saída.

O pai foi ainda pior. Já pensou atravessar a porra de um continente, não sei quantas fronteiras, pagar a uma quantidade enorme de gente por coisas insignificantes, desde o transporte a comida ou documentos, para acabar a trabalhar a talhar pedra no meio do inferno abrasador que é o Alentejo? Eu também não e estou-me a borrifar para isso, mas dava para ver que era uma pessoa muito mais ambiciosa do que o que aparentava. Ele tinha formação superior, era advogado na Ucrânia e, embora não dominasse a nossa língua inteiramente apesar de estar cá há imenso tempo, sabia esquivar-se. Que nós soubéssemos não tinha antecedentes. Diz que estranhou a demora da mulher e foi ter com ela a casa quando deu com aquilo tudo. A fraqueza dele não era a forma como respondia ou aquilo que dizia, mas sim aquilo que não podia dizer – puxou de outro cigarro e acendeu-o dando-lhe duas passas e libertando o fumo sob a mesa – afinal de contas, não há nenhum comboio direto que ligue Lisboa a Kiev e o caminho é cheio de atalhos…

- Pensava que o pai estava envolvido, ou que se tratava de algum ajuste de contas?

- Não… não exatamente, embora fosse preciso descartar essa hipótese. Afinal de contas, não são todos os emigrantes que têm um carro todo preto, vidros fumados e sem o símbolo da marca ou a referência do modelo, nem à frente nem atrás… aliás, o carro que eles conduziam nem sequer era deles. De uns amigos… “e se nós formos investigar esses amigos, vamos encontrar alguma coisa invulgar”, e ele calava-se, ou então tentava centrar a questão no desaparecimento da miúda, no cenário da casa… Esse tal amigo era um moldavo e pelos vistos tinha muitos carros em nome dele… enfim, podia perfeitamente ter sido um ajuste de contas, uma dívida à organização, mas isso não explicava o cenário nem havia nada que indicasse uma relação entre as duas coisas. Durante os dez anos que estava no país, casado há oito, tinha tido sempre emprego, tinha descontado impostos, enfim, tudo certo. Decidi voltar à casa…

- Que horas eram?

- Já era meio-dia, não tinha comido nada ainda e precisava de pensar. Entretanto informaram-me que já tinham fechado a fronteira e começaram a revistar todos os carros suspeitos, e tinham começado a fazer operações stop nos caminhos para Lisboa. Era melhor do que nada. Parei o carro no início da aldeia, num cruzamento logo à entrada e atravessei aquilo a pé, entrei num café e pedi uma bifana e um café. Toda a gente sabia que eu era o inspetor e toda a gente ficou calada os cinco minutos que estive lá dentro… comecei a achar que mesmo que alguém soubesse de alguma coisa nunca me iam dizer… um sítio daqueles é como uma ceita, todos sabem dos segredos uns dos outros, e todos parecem conspirar por algo, mas se algum intruso tenta penetrar no seu seio, ninguém vai colaborar! Ninguém vai trair a confiança da comunidade, ninguém vai compactuar com os interesses do intruso, transformam-se em lobos que querem proteger a alcateia e que estão prontos para te morder e ver morrer de desespero por tentar… Esquivam-se como um cardume sem ninguém ao leme mas com todos na mesma direção e quando era preciso que alguém tivesse que dizer alguma coisa só estão autorizados a falar alguns tipos de pessoas: as autoridades; os políticos; os padres; e os ricos. E rapidamente me tentaram engolir no meio daquela avalanche de ataques, sobretudo porque tinham acabado de chegar as carrinhas da televisão...

O local do crime parecia um circo, e se antes não conseguia encontrar um depoimento decente, o que não faltavam agora era gente a falar em direto para um canal qualquer… Incluindo pessoas que ainda nem tinham prestado declarações à polícia. Desde o presidente da junta, ao presidente da câmara, ao padre, todos prestavam “as suas orações para que a pequenina fosse encontrada rapidamente e que nada de mal lhe tivesse acontecido”… hipócritas de merda.

- Não acreditava na boa-fé?

- Qual boa-fé? Estar a atrapalhar a investigação implantando uma versão dos acontecimentos na opinião das pessoas e possíveis testemunhos através do palanque da televisão que garantiriam fieis, votos, clientes, etc.?! Há alguma boa-fé em querer impor-me uma versão dos acontecimentos contraditória ao que os factos me apresentavam… Como é que ninguém tinha ouvido nada, com a janela rebentada e o quarto todo ensanguentado... Esta gente queria tudo menos que o caso terminasse rapidamente e em bem… quantos mais dias se prolongassem as buscas sem sucesso, mais vigílias seriam feitas à porta da igreja, mais tempo de antena seria concedido aos políticos, e mais difícil se tornaria, para mim, chegar a qualquer ideia com sentido.

Eles não queriam um investigador… Queriam uma solução que não responsabilizasse ninguém e nesse mesmo dia chegara a informação de que não estava sozinho no caso. Estava agora sob o comando de um Major da GNR, encarregado de gerir o teatro de operações, entre a PJ, a GNR e os Bombeiros. Já estava à minha espera na casa dos avós maternos da criança, num monte que ficava entre o Redondo e Évora. Viviam da produção de hortícolas, algumas cabeças de gado, ovelhas e porcos, nos vários hectares de terra que tinham arrendados ao mesmo dono da casa onde a filha morava, e talvez tenha sido daí que conseguiram os empregos… eu ia anotando esta teia de influências, mas o tal Major assim que me viu ficou mais interessado em mim do que no caso, “andou a beber hoje, inspetor?”, não era uma pergunta, era uma acusação, “tem a certeza que está em condições de conduzir o caso, parece agastado”, “tem a certeza de que temos um caso”, perguntei-lhe eu… filho da mãe, era suposto ter esperado por mim, mas “já falei com o casal, não têm como provar que estavam em casa, mas parece que souberam do caso pela televisão instantes antes de eu ter chegado” o telefone tocou e ele olhou para o visor, afastou-se e foi atender.

- Desconfiou de alguma coisa?

- Eu dei uma volta à casa. Era um daqueles montes retangulares que estamos habituados a ver nos quadros e nas fotografias, sabe, branco, rodapé azul, telhado baixo, no ponto mais alto da planície ondulada, no meio de uma paisagem pincelada de sobreiros e oliveiras. A Este do monte estava o gado solto, a Norte as ovelhas numa redoma e a Oeste a porqueira, depois disso nada… vazio, em toda a volta, não dava para avistar mais do que cercas, nem o monte se via da estrada, nem a estrada desde o monte, nem uma vila ou aldeia… Havia uma imagem de uma santa por cima da ombreira da porta, em azulejo, um poço a uns quinze metros, aberto e com um balde do lado de fora. Dirigi-me até lá, tinha a roupa empapada de suor e a uma sede interminável, senti tanto uma cede enorme como um impulso de me dirigir até aquela fonte.

Era um poço com um muro de xisto, um arco por cima com uma roldana por onde passava o cordel atado ao balde e preso a um gancho lateral, não havia água no balde, mas o poço tinha água lá em baixo. Atirei-o lá para dentro e quando ia içá-lo, do lado contrário, fiquei virado para a casa e vi o GNR sair de lá com a mulher a chorar e a gritar que não tinha feito nada à sua frente, algemada atrás das costas. “O que é o cabrão está a fazer?” pensei eu, e larguei o balde. No momento em que este bateu no fundo deu-se um disparo vindo da porta do monte, e o Major foi fuzilado com uma rajada de chumbos nas costas, caiu ele e a mulher à frente dele. Eu vi o velho sair de dentro da casa, mas ele não sabia onde eu estava, aliás, nem devia saber que eu ali estava, deu um passo em frente com a espingarda a fumegar até que reparou no meu carro e olhou à volta. Eu estava atrás do poço, apontei-lhe a arma e gritei que largasse a espingarda, e ele disparou outro cartucho na minha direção, senti o impacto dos chumbos no muro do poço e ouvi o zumbido passar à volta, espreitei pela lateral e disparei… houve miolos por todo o lado… - apagou o cigarro e fez uma pausa enquanto passou as mãos pelo rosto.

Corri em direção a ele, estava morto, depois vi que o GNR e a mulher ainda se mexiam, fui até ele. O gajo tinha sido varado e a mulher tinha apanhado com uma parte da nuvem dos chumbos que, àquela distância, não tinha aberto muito, puxei pelo rádio dele para pedir ajuda e liguei através do telemóvel, disse para o gajo estar quieto e não falar, mas enquanto soluçava sangue puxou-me pelo braço, olhou para mim e disse-me “foram… foram os velhos… o sangue, o sangue era de porco… era sangue de porco na cena… há roupas da miúda lá dentro”, enquanto se esvaia em sangue. Fui até ao interior da casa. Cozinha e sala com fumeiro e lume de chão, corredor para os quartos e no topo um vazio claro em forma de cruz na ombreira do corredor, faltava ali qualquer coisa… entrei e vi um saco aberto à porta do quarto, eram roupas de criança cheias de sangue. Voltei a sair, e vi a arma do velho, estava descarregada…

 

(CONTINUA)