12 Março 2017      13:10

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RAGING BULL - A SUBLIME PERDIÇÃO DO TOURO SOLITÁRIO

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Raging Bull / 1980 - Martin Scorsese

Se tivermos a audácia (acto nem por isso muito audaz) de elevar o desporto a arte, e por consequência o desportista ao nível de deus menor, confrontamo-nos imediatamente com a figuração de ideais. Um desses ideais é o homem (deus menor autoconsagrado) contra o mundo. Imaginário que se escora na solidão. Nesses termos, duas representações típicas distinguem-se de todas as outras, ambas notavelmente e bastas vezes reproduzidas: o guarda-redes perante o campo de futebol e o pugilista no canto do ringue. Último pilar, para além deles apenas resta o inferno da queda, sendo que com uma diferença: um sustenta as muralhas e o outro sustenta-se a si próprio. Ou seja, um sustenta o bloco e, caso falhe, faz com que se perca o império (mas perdido o império tem quem o acuse e quem o ampare na queda; tem hipótese, mesmo se desequilibrada (mesmo se muito desequilibrada) de partilha – derrubadas as muralhas, inevitavelmente a derrota é de todo o poderio, anteriormente representado pelo império); o outro, caído, não tem redenção, a mão que o tentasse levantar era o insuportável conforto da vergonha – o contrário, portanto, do aconchego da mão amiga.

Jake la Motta, pugilista profissional e touro enraivecido por vocação, na encarnação de Robert de Niro em Raging Bull, é a hipérbole do que foi dito anteriormente. Múltiplas camadas de solidão de um homem fatalmente perdido, e fatalmente perdido por fatalmente se recusar a sair de si próprio. Presume-se que o Jake real, um dos maiores pesos-médios da história do boxe, e o único dos grandes que assumiu ter vendido um combate, é no mínimo um eco sincero do primeiro.

Martin Scorsese não era propriamente um novato quando, impelido por Robert de Niro, se decidiu por Raging Bull, ou de outro modo pela personagem Jake la Motta. Os movie brats aguardavam agitadamente a desintegração do sistema que tinham ajudado a revitalizar, e Scorsese também fazia a sua parte. Imaginou um filme com aura de definitivo, o que Taxi Driver à sua maneira já era. Conseguiu um pouco mais, um filme sem tempo definido por ser pertença de todo o tempo. O preto e branco fortemente contrastado reforça essa extrapolação, que mais não é que a entrega última ao objectivo. Datas surgem com frequência no ecrã e perguntamo-nos para que servem, o que significam. O sistema sobreviveria facilmente a Raging Bull (a queda principiaria nesse ano de 1980 com Heaven’s Gate, de Cimino, e a falência da United Artists, e culminaria dois anos depois com One From the Heart, de Copolla, e a falência do próprio), privando-o naturalmente dos merecidíssimos Óscares de Melhor Filme e Melhor Realizador – restariam os inevitáveis: o de Melhor Actor para De Niro e Melhor Montagem para a mítica Thelma Schoonmaker. Sobrou uma lista interminável de elogios.

Jake, na primeira vez que nos aparece, vemo-lo desfigurado e envelhecido, o percurso será o da inexorabilidade do tempo dentro da indefinição do espaço-tempo. Um pouco atrás foi dito algo de semelhante. A entropia registada no rosto. Os quinze minutos seguintes são como que um manual de instruções (também de cinema): uma derrota que é uma vitória, um casamento que é uma profunda separação, um encontro inevitável com a História que é a divergência com o respectivo meio-físico e, finalmente, a consciência de uma super-condição que é o total desfasamento de alguém consigo próprio (com o próprio corpo) e, na sequência, com tudo o que o rodeia, “Sou melhor que todos eles e nunca vou ter a possibilidade de os defrontar. Nunca poderei combater com o Joe Louis.” - Tenho a mãos pequenas, diz; responde o irmão: e então (?), para quê pensar nisso, tu és peso-médio, Louis peso-pesado… Universos diferentes não se encontram; o que para o irmão é um facto incontrolável, e por isso um óbvio não-motivo de perturbabilidade, para Jake representa o caos da incompreensão, caos primordial.

Todo o restante do filme é uma sustentação desses primeiros quinze minutos. Apenas (um meramente que é tudo) uma viagem entre os buracos de verme dimensionais que consolidam o ponto de vista. O som e a montagem são o veículo natural (porque cinema) dessa vertigem.

Aos nossos olhos arrebatados, por exemplo, os momentos mostrados dentro do ringue existem, arriscamos concluir, unicamente ao nível da mente deturpada de Jake. Como uma viagem através do seu desejo perdido (o de nunca poder combater pesos-pesados - há um desconforto que vem do exterior, o som continuamente arrastado, e uma sensação de desproporção, esta do interior, sempre que vemos Jake no contexto do ringue) ou da sua necessidade de superação (o martelo da autopunição, o punho de Sugar Ray Robinson, como a confirmação da sua excepção, “Never got me down, Ray!”, mesmo se antes, em posição crística, foi desfeito numa amálgama irreal de sangue).

No final, o mesmo Jake desfigurado e gasto pelo tempo, já não fala pela sua voz mas pela de um outro, nada menos que o grande perdedor mítico da história do cinema, o Terry Malloy de On the Waterfront, ou seja, Marlon Brando. Tornando-se Jake explicitamente no motivo de busca do cinema americano, a procura por esse estranho herói, vencível de acordo com os cânones da história contada, mas invencível no campo que realmente conta, o da suprema individualidade que é a suprema integridade. Estado onde a loucura se confunde com o ideário, onde a sobrevivência do arquétipo perante a eventual ou eventuais contradições somente é possível por assentar no sacrifício / na perda voluntária.

Nesse sentido, os movie brats são os últimos grandes cineastas americanos, e Raging Bull faz a parte que lhe compete quanto ao desígnio maior da New Hollywood: conceber o derradeiro filme clássico americano.

 

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