5 Junho 2016      15:23

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NÃO ESTOU AQUI PARA TI, PATRIARCADO

"INCONSTÂNCIAS"

De que está o patriarcado tão assustado? Começo este artigo com a pergunta óbvia que fica enterrada sob a maior parte de arrogância assoberbada e negações quase violentas de que o último não existe. Tal como fica a noção de que não existe uma cultura da violação ou uma hipersexualização e objetificação da mulher. Tal como existe uma suposta liberdade de escolha relativamente ao meu corpo. “São tudo mariquices destas feministas. Vão-me é fazer uma sandes.”, dizem eles e até negando a existência de um mundo de homens eles a comprovam claramente.

Fui levada a escrever hoje este artigo pelos mais recentes acontecimentos no Brasil e pelos asquerosos comentários que encontrei online e offline vindos de homens – e surpreenda-se caro leitor- até de mulheres relativamente á menina de 17 anos. Sim, menina. Mas, caro leitor, isto já não tem que ver com o Brasil, isto tem que ver com todas nós. Isto tem que ver com o corpo de todas nós. Com a vida de todas nós. Porque, leitoras, quando uma de nós está em perigo todas as outras o estão também.

Ainda antes de nascermos nós já estamos a ser carimbadas com uma das características limitantes, mas que a sociedade acha inclusivas: o enxoval é cor-de-rosa. As meninas têm de ter um enxoval cor-de-rosa e os meninos azul, não vá a criança confundir-se logo á nascença e não tomar na sociedade o lugar que lhe é reservado. A violência contra as mulheres começa no dia em que elas nascem e ainda nem se sabem mulheres. Daí para a frente a sua educação vai ser uma constante prova de que não podem ser mais do que aquilo que nasceram para ser. Um constante ajustar de contas com aqueles que a diminuem porque a temem. Uma constante tentativa de preencher as cláusulas imaginárias criadas por uma sociedade machista e preconceituosa sobre o que deve ser uma mulher. E uma mulher deve ser tudo menos uma mulher. Deve ser um brinquedo, um objecto, uma publicidade, um chamariz, uma princesa, uma freira, educada, alegre, suave, submissa. Infeliz. No fundo, o que a mulher é é infeliz.

Que homem aceitaria que o seu corpo fosse discutido na Assembleia da República, contemplando mil e um conceitos, menos o do direito de decisão dele mesmo? É esse o ridículo a que nós temos que nos submeter. O ridículo de ter que ouvir “aborto é crime logo és uma criminosa”, “é uma vida!” ou “em casos de necessidade deve ser realizado” “imaginem que a criança nasce deficiente”. Tudo o que importa nessa discussão são os outros, a forma como os outros encaram a vida, a forma como os outros encaram uma vida que EU gerei, a forma como os outros encaram tudo menos que o corpo é meu e por isso EU é que devo decidir sobre ele. EU é que devo decidir se sou capaz. EU é que sei onde estive para chegar ali. Sem notarmos o facto de que essa discussão será maioritariamente realizada por homens que não sabem absolutamente nada do quanto custa. De como é. Sem notarmos o facto de que a maior parte dessas convicções vêm de noções religiosas. Das mesmas noções religiosas que fizeram da mulher um ser impuro e pecador. Das mesmas noções religiosas que fazem questão de sublinhar que a mulher nasceu da costela do homem e deve ser-lhe submissa. Das mesmas noções religiosas que falam de apedrejamento da mulher que, surpresa caro leitor, ainda existem no Oriente. Qual é, então, a diferença?

A diferença é que cá o machismo é disfarçado e astuto – é necessário ser-se observador para ver como ele funciona. Cá, o machismo é maioritariamente mental, mas não é por isso que deixa de ser machismo. Cá o patriarcado parece atitude de proteção, mas não deixa de ser patriarcado.

Desde revistas a jogos de vídeo, de filmes á pornografia – ouvimos dizer que o sexo vende. Mas não é o sexo que vende: é o sexo feminino que vende. São os grandes outdoors com traseiros redondos e bronzeados, são as publicidades em lingerie em que o peito aparece firme e gigantesco, simétrico e falso, são os jogos de vídeo com as suas personagens de cinturas finas e pernas longas, os filmes com a princesa que precisa de ser resgatada pelo herói, a pornografia em que a mulher se ajoelha perante o homem. Todas estas situações não têm como objetivo deixar a mulher segura de si mas agradar aos homens. Sempre agradar aos homens, seja para os fazer sentirem-se como herói seja porque podem vangloriar-se aos amigos de que a namorada tem o peito parecido com aquele outdoor.

Sabia, caro leitor, que existe um jogo de vídeo cujo principal objectivo do jogador é violar uma nativa americana? Chama-se Cluster’s Revenge e após ter sido retirado do mercado ressurgiu em 2008 com gráficos muito mais claros. Os gráficos consistem numa nativa americana presa pelos braços enquanto um jovem de tez clara ultrapassa as flechas até a conseguir violar. – Se você não vê o que está errado com este jogo aconselho-o a consultar um psiquiatra caro leitor. As estimativas serão de que tem um caso de machismo sério. Sabia também que não é permitido às mulheres amamentarem os seus filhos em público porque têm que mostrar o peito? Sabia ainda que, no entanto, existem revistas nas quais as mulheres aparecem nuas sem qualquer tipo de restrições?

Qual o problema então com a amamentação? Será a quebra da ilusão de que o corpo da mulher é uma máquina de sexo desenhada exclusivamente para regalo dos homens? Ou o facto de que homens de 40 anos agem como miúdos de 15, devassos e babosos, vendo numa atitude natural algo de sexual?

Aposto que neste momento se está a rir á gargalhada de tudo o que disse até agora, negando todas as minhas razões e reforçando essa ideia idiota de que é tudo biológico. Aproveito agora para lhe contar da minha própria experiência: perdi contas às vezes em que fui abordada por um senhor que tinha idade para ser meu avô na rua quando caminhava para a universidade. Quase todos os dias passava por ali e quase todos os dias tinha que lidar com os comentários nojentos e jocosos de uma pessoa que não me conhecia de lado nenhum. Uma pessoa que provavelmente tinha filhas ou netas. Uma pessoa que não tinha, provavelmente, a noção de que enquanto ele me abordava a mim outro igual a ele abordava a sua filha ou neta. Tem filhas ou netas, caro leitor? Ainda se está a rir agora?

É nesta brincadeira que a nossa sociedade vai seguindo e nos vai fazendo querer acreditar que está tudo bem. Que somos tratados da mesma maneira. Mas homens não têm que se depilar. E homens não têm que gastar dinheiro todos os meses em tampões e pensos higiénicos para algo que é natural enriquecendo porcos de bolsos largos. E homens não têm que gastar dinheiro em métodos contracetivos porque nos Centros de Saúde eles oferecem preservativos. E homens têm desculpa quando violam porque fomos nós que os provocámos e fomos nós que usámos uma saia e eramos nós que estávamos a pedi-las. Homens podem ser homens, a versão mais rasca e nojenta que poderão ser que ninguém lhes dirá: comporta-te!

A mim, mulher como todas vocês, não me podem ouvir dizer um “porra” alto e sentido que sou repreendida. “Princesas não dizem essas coisas.”

Pois, mas eu não nasci para ser nenhuma princesa. Eu nasci para ser mulher e para ser guerreira e divina na minha condição terrena. Para gerar vida, um dos maiores milagres, e para ser vida. Para gritar pelo que quero e para querer ser o que quiser. Para poder ter a escolha de não utilizar soutien porque me magoa as costas (que agradável ter um arame dentro da roupa interior não é?), de não me maquilhar porque não sou nenhuma boneca, de não ter um traseiro firme ou peitos redondos porque eu não sou uma fantasia. E não sou uma ilusão. E não sou um brinquedo sexual, uma ideia pré-concebida. Não sou um aconchego para o ego de nenhum homem ou a imagem pornográfica dos seus desejos. Eu não nasci para ser nada disso, não nasci para nenhum homem.

Eu nasci para mim, para ser pessoa. Para ser Mulher com tudo aquilo que ser mulher poderá englobar. E o que englobar é uma escolha MINHA e de mais ninguém.

De que tem o patriarcado medo? O patriarcado tem medo das mulheres que não têm medo do patriarcado. 

 

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