25 Março 2017      11:11

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LINHAS CRUZADAS

"PARALELO 39N"

Os comboios são lagartas que deslizam em linhas de ferro. São lagartas às cores, cinzentas, vermelhas, azuis e amarelas. Nas linhas de ferro, frias e desumanizadas, os comboios deslizam suavemente como se fossem lagartas. Em carreiros como aqueles que as formigas fazem, deslocam-se de um lado par ao outro, cheios de gente lá dentro.

As linhas dos telefones, enfiadas entre os postos trocam-se e entrelaçam-se e nunca se encontram no cruzamento. São como os comboios que param em cada paragem sem nunca atrasar um minuto. Tudo bem contabilizado deixa de ser sensato ficar esperando o comboio fora da estação e imaginar as linhas desenhadas na perfeição.

Perto de mim, havia uma estação pequena. Ficava no meio da encosta. Aquele que outrora tinha sido uma das mais movimentadas, era hoje pouco mais do que uma estação fechada, abandonada. E nela se via o espelho do que fora outrora e hoje existia como que um castelo fantasma, em ruínas. Deixava-me num limbo que não sabia muito bem o que fazer. Na linha, velha enferrujada, já não se via a passagem do comboio como se vira outrora. As lagartas tinham abandonado a terra, como os lavradores a tinham abandonado também. E no fundo de um saco, restava o vazio.

As próprias linhas dos telefones abandonaram os montes e os postes de pinho já não apareciam como antigamente. Apareciam só os sinais dos telefones sem fios. Sento-me no banco que cá fora estava já gasto pelo sol e pelo frio, a tinta fugira com o calor, como fugiram os comboios e as pessoas. O interior tinha cada vez menos gente. A cada ano, deixavam de se ver os rostos que se conheciam e a mágoa fortalecia. Até ao dia de partir, vejo os outros partirem. As lagartas que são os comboios já não deslizam nas linhas de ferro. As portas da estação estão já fechadas e lá dentro não resta nada. Não resta a casinha onde ficava a senhora, ou o senhor, que fazia parar os carros na hora de passar o comboio. Nem restava a velha sala de espera.

À porta da estação, um gato grande olhava os poucos passageiros que se juntavam à espera do comboio que estava atrasado em mais de vinte minutos. Não chovia, e ainda bem que assim era. Se chovesse, o vento empurraria a água para os passageiros que esperavam o comboio no frio. Nem o nevoeiro, nem a chuva impediam as lagartas que deslizavam no meio das linhas. Antes, os bancos de madeira eram a automotora, parte dela. Hoje em dia, os bancos confortáveis das lagartas, lá dentro, vazias, esculpidas e em casa lugar o wi-fi. A ligação ao mundo sem fios. Não fora a velha estação a lembrar-me, algumas linhas que ainda se mantêm em pé, ligadas nos montes, e não recordaria a sua existência. Tivesse eu nascido vinte anos mais tarde e já nada me diriam as linhas do telefone.

Tudo me rodeia sem fios. As linhas das lagartas que hoje me rodeiam, aqui onde estou, essas já dispensam os fios que lhes dão a energia. Circulam em linhas eletrificadas e são impulsos. Ocasionalmente, fios que são a memória persistente.

As linhas cruzadas são a teimosia do passado a manter-se presente no olhar de quem vê mas nem repara. É banal e acaba por ser só mais um elemento. Entre a velha estação e esta gigante onde escrevo este texto, não há nada que se compare. Comparo eu o tempo que vi a casa cheia, a pequena estação de portas abertas e barulhos lá dentro, até agora na plataforma onde crescem as ervas e já não param os comboios. Nesta, onde escrevo, passam milhões de pessoas e nela não consigo encontrar o ritmo. São, apenas, pessoas a correr, perpendicularmente, em linhas cruzadas, falando entre si, em telefones sem fios. 

 

Imagem de abstractinfluence.com