23 Abril 2017      13:49

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DEVENDRA E O REJUBILAR DA CONSCIÊNCIA

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

A todo o ser humano apto, i.e., ciente da sua funcionalidade, compete (e desde muito cedo) encontrar um caminho para a necessária distanciação que lhe permita sobreviver, num mundo onde quase tudo em quase todos os momentos o pode matar, com mais ou menos sobressaltos (consoante a parte do planeta onde lhe tenha cabido nascer). O caçador-recolector demasiado consciente da morte de que nunca verdadeiramente nos libertámos enquanto espécie.

Não sem perturbação (mas, por outro lado, como se do mais natural se tratasse), apesar dessa quebra, aparente fracasso do suposto elemento distintivo do duplo sapiens, o macaco sem pêlo encontrou algures a hipótese do milagre. Da percepção da perda das perdas, o encolher de ombros seguido de um sorriso que sabe misturar a sacanisse com o prazer, raramente mostrando demasiado os dentes. Como um bom vinho, a que não se permite ser doce, e talvez por isso possa em certos casos tornar-se sublime.

Dizer que o referido sorriso é alegoria é afirmar o óbvio. Mas que forma toma? De que modo se expressa? O aspecto do mundo é-nos servido por correspondências. Um cientista tem o seu sorriso (ideia feita teoria), o futebolista o seu (movimento feito poesia), o advogado o seu (acção feita justiça) e o artista também o seu (percepção feita sentimento). Dos exemplos anteriores o que mais se presta a equívocos é obviamente o sorriso do artista, pois não tem consequência objectiva e imediata que o legitime (não importa se a teoria é definitiva, o golo é sempre golo e a justiça ocorre quando transita em julgado – ponto; qualquer outra hipótese é a loucura). O movimento artístico tem, pois, a liberdade que outros não têm: pode provir, habitar e desaguar da/na loucura. O sorriso do artista não é o sorriso da mente lógica e racional, é o sorriso que assenta no sem rosto do que é cósmico no sentido emocional, que não tem princípio nem fim, que não é grande nem pequeno – pois não tem escala associada, e portanto onde se pode construir o milagre. Resumindo: uns escolhem deus, outros, descoberta a hipótese do sorriso cósmico, escolhem simplesmente continuar a sorrir – e destes, alguns escolhem testemunhar, outros, muito poucos, decidem espalhar a mensagem, sendo que todos acabam por rejubilar. É o rejubilar da consciência. Como respondeu Sócrates ao seu carcereiro, antes da sua morte iminente, enquanto aprendia a tocar uma ária de flauta (citação do grande Emil Cioran – que aparentemente não rejubilava nunca – e como estávamos enganados a esse respeito!): mas se vais morrer em breve, porque queres aprender a tocar essa ária? Precisamente para a saber tocar antes de morrer.

Enfim, sem que lhe fizéssemos qualquer referência, estivemos a falar de Devendra Banhart e de um corolário do seu maravilhoso disco: Rejoicing In The Hands (2003).

E porque, enquanto artista, se pode dar a todos os luxos, também pode, de vez em quando, ser explicativo:

“ Well I knew I knew I could stand tall / I could lay low / This is the sound / That swims inside me / That circle sound / Is what surrounds me / This is the land / That grows around me / And these are the hands / That come in handy / Well we've known we've known / We've had a choice / We chose rejoice “

 

Imagem de agambiarra.com