31 Dezembro 2016      10:15

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CARRINHA DAS MERCEARIAS

"PARALELO 39N"

 (série Memórias)

Isto acontecia aí de quinze em quinze dias. Os gaiatos ficavam todos empolgados com a chegada da carrinha das mercearias. Uma alegria. Viam-se nos seus olhinhos pequenos como bugalhos, contentes por ouvir o som lá ao longe daquela buzina que funcionava tão bem para os chamar. Estivessem a fazer fosse lá aquilo que fosse, vinham a correr só para ver se caía alguma guloseima ou quais eram as novidades dessa tarde. Não, havia, se analisarmos bem, assim muitas novidades que se pudessem renovar quinzenalmente. Mas havia sempre a alegria e a coisa menos vista nos últimos quinze dias – a carrinha das mercearias.

Estavam os gaiatos brincando lá no fundo do vale, entretidos a fazer barragens nas nascentes, a construir barquinhos e a lavrar hortas. Sem que ajudassem muito ou mesmo que a sua intenção fosse essa, ajudavam os crescidos na lavra da horta e a preparar o húmus para a sementeira de milho e de feijão. Depois das barragens, decidiam fingir fazer a lavra e dois agarravam no arado e começavam a lavrar. Todos lhe agradeciam sem que o soubessem. Não se tratava de trabalho infantil, não. Este era feito à revelia do patronato crescido, vulgo, os pais. A paga era, ainda assim, muitas vezes, um ralhete.

A hora de sair do serviço não era a campainha ou a buzina ou outro sinal indicativo desse fim. Era, de quinze em quinze dias, a buzina da carrinha das mercearias. Tocava e tocava vezes sem conta antes ainda de chegar ao monte. Estava a uns cinco quilómetros de distância e já começava a fazer um alarido que se propagava pelos cerros e vales. A gaiatada começava então a correr pelo vale acima, cada um a ver se chegava primeiro do que o outro, quase se atropelavam como se aquilo fosse a corrida dos 1000 m das olimpíadas.

Corriam desalmadamente sem olhar muito atrás não fossem transformados em sal, como a mulher de Lot, e não conseguissem provar o açúcar das guloseimas que o Ti Manel João das mercearias trazia consigo. Vestidos de calções, sapatinhas já gastas do uso, os joelhos todos empoeirados, o cabelo meio enfeitado com folhas secas e pedaços de feno, corriam desalmadamente. Nem havia tempo para limpar os narizes com a vontade de chegar à linha de chegada que era a parte de trás daquela carrinha de caixa aberta, coberta com uma lona esverdeada. A acompanhá-los os cães, uns maiores outros ainda cachorrinhos corriam eles também, fazendo parte daquele desafio do qual não percebiam o propósito. Sabiam que era para correr porque os donos estavam a fazer isso. A eles não lhes cabia guloseima. Talvez um osso da carne da couve, se tivessem sorte. Ou então, umas sopinhas de pão.

Na carrinha, de caixa aberta e cobertura de lona, misturavam-se os cheiros. O bacalhau misturava o cheiro com as frutas e com as cebolas. Misturavam-se os cheiros dos produtos de limpeza com o sabão azul e com o Fabuloso que se usava para limpar o chão. Não era possível conseguir separar também o cheiro típico das cavacas com o cheiro dos outros doces e chocolates e eram precisamente esses cheiros que os gaiatos procuravam e ansiavam.

Já sem fôlego chegavam perto da carrinha. Os cães chegavam sempre primeiro e ficavam a olhar para trás e a abanar o rabo. Sentiam-se realizados e não sabiam porquê. Não precisavam saber. O que lhes interessava era partilhar aquele momento com o dono. A alegria de uns era a de outros a dobrar. O gaiato mais velho chegava primeiro normalmente. Tudo escalfado, bebiam um copo de água no cocharro que estava pendurado ao lado da torneira da fonte e bebiam.

A carrinha estava estacionada ao lado, perto da vista, e as mães estavam a comprar as mercearias para as duas semanas seguintes. Uns peros de Monchique, um quilo de bacalhau, duas dúzias de ovos, que as galinhas do monte andavam em greve. Duas barras de sabão. Um garrafão de lixívia. Bananas. Um quilo de açúcar. Um pacote de pudim daquele do velhote e dois litros de leite. Para os gaiatos que não saiam dali, uns chocolates, uma caixa de Nestum e uns rebuçados. Não tinham direito a muito mais esta semana. Mesmo assim, valera a pena a corrida e já podiam voltar ao ponto de partida descansados. Tudo se repetiria daí a quinze dias.

 

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